A manifestação oportunista e o partido do contra
A melhor forma de impedir que retirem proveitos desta manifestação oportunista é ignorar a sua existência, no sentido de se evitar o aparecimento de provocadores e de os restantes partidos não contribuírem para ceder mais palco político ao evento.
Mais que um ideólogo, veste que manifestamente não lhe assenta bem, André Ventura é um oportunista pouco escrupuloso. Dotado de suficiente esperteza, apanhou a onda de descontentamento popular decorrente da existência de uma classe política que pouco evoluiu na sua relação com os seus representados e que tarda em entender que os verdadeiros protagonistas são os cidadãos e não os políticos. O perigo real de Ventura para o regime que diariamente contesta, não decorre do próprio Ventura, mas sim da militância dos seus seguidores. Mas não se pense que o líder do Chega é pessoa pouca dotada de inteligência, muito pelo contrário. Ele sabe bem o modo como usar a linguagem popular para ser visto como o messiânico representante do povo, algo vedado aos políticos tradicionais. No entanto, não sendo o seu discurso decorrente do primor das suas ideias, que até são poucas, ou o seu projecto político emanado do seu programa, que mal segue por preferir cavalgar as oportunidades que cada dia lhe reserva, o seu potencial de agregação deriva mais da forma desabrida como se exprime, e do contexto em que surge, do que do seu próprio mérito.
Além do contexto sociopolítico, Ventura começou por beneficiar do megafone que lhe era oferecido pelo Correio da Manhã e pela CMTV. Perdido o palco privilegiado para chegar às massas e uma vez decorrido tempo suficiente para pôr a nu algumas das suas incongruências, hoje, mais do que nunca, o líder do Chega precisa de recorrer à confrontação, o que lhe garante sempre tempo de antena nos media sequiosos de polémica, e precisa sobretudo de pretextos para se colocar no papel de vítima. É essa a sua estratégia para as redes sociais, em que a toda a hora provoca os seus adversários de forma básica, recolhendo o apoio de fãs que usam o mesmo procedimento nos deploráveis comentários que podemos ler por quase todos os jornais relativamente a quase todas as notícias.
Não é preciso uma análise muito cuidada para perceber que a maioria dos seguidores de André Ventura não o seguem por aquilo que ele é a favor, mas sim por aquilo que ele se diz contra. Entre outras coisas, e recorrendo a uma crueza muito ao gosto de quem já não acredita nas palavras brandas, o Chega contesta a corrupção, o desprezo pelos agentes da autoridade, alguns excessos do politicamente correcto, a hipocrisia da extrema esquerda e o vandalismo militante. Tudo isso lhe rende votos. Há uns dias, na caixa de comentários a uma publicação de André Ventura no Facebook, houve até uma senhora que lhe pediu para deixar de apoiar as touradas para ela poder votar nele. Dificilmente poderia haver melhor exemplo para se perceber o que é um partido do contra.
Se, nas últimas sondagens, o Chega já se equipara às intenções de voto no Partido Comunista e fico apenas um pouco abaixo do Bloco de Esquerda, André Ventura sabe que essa relevância está bem reflectida nas redes sociais, onde as pessoas se movem sem tanto receio de revelar a identidade. Nos jornais e nas televisões, tirando o próprio Ventura, não há vozes que defendam o Chega. E nas ruas, muitos dos que se exaltam no Facebook, preferem esconder a sua simpatia por um partido que sabem estar a ser usado por facções anti-democráticas. É neste contexto que surge a organização da (contra)manifestação do Chega contra o racismo. Julgo que serão três os objectivos dos seus organizadores: desde logo, assumirem-se como a força mais contestatária da direita portuguesa por saberem antecipadamente que PSD, CDS e IL não adeririam à manifestação; depois, pressionar os seus seguidores a darem a cara e a sentirem-se mais confortáveis, seguros e até orgulhosos com a sua simpatia pelo Chega; por fim, aproveitar qualquer oportunidade que surja para fazerem novamente o papel de vítimas.
Quando anunciou a manifestação do dia 27 de Junho, André Ventura referiu-se a ela como uma das decisões mais arriscadas da sua carreira política. Seria óptimo que todos aqueles que desprezam o Chega e a sua forma de fazer política se lembrassem de que quem lhe dá mais força é quem alinha no jogo da provocação e quem, atacando o Chega, se esquece de salvaguardar a pertinência de muitas das queixas dos seus seguidores. A melhor forma de impedir que retirem proveitos desta manifestação oportunista é ignorar a sua existência, no sentido de se evitar o aparecimento de provocadores e de os restantes partidos não contribuírem para ceder mais palco político ao evento. Dar a André Ventura mais uma oportunidade para se fazer de vítima será recompensar o risco que ele decidiu correr. Perca ou ganhe o desafio na rua, pelo menos que não o ganhe fora dela.