Autocertificação (VII)
Há momentos em que é imperioso combater em duas frentes. Escolher apenas um combate e triunfar pode representar uma derrota estrondosa. Sónia resiste, desafia as ideias dominantes, apaixona-se.
Durante a pandemia, nada melhor do que ler Dante, O Inferno, pensou Sónia. Os mortos com quem Dante tanto conversa, enquanto vai caminhando em círculos cada vez mais apertados, a tricotar versos, continuam bem vivos. Falam, correm e saltam, têm corpo, sofrem dores, lamentam-se, choram. São como nós, afinal. Pedem a Dante que, quando voltar ao mundo dos vivos, fale deles, os recorde, os não deixe morrer na memória dos homens. Parecem exilados, com saudades de casa. Nós somos mortos diferentes. Sentimo-nos frágeis como bolhas de sabão. Sentimos que, a qualquer momento, vamos rebentar e desaparecer para sempre, sem termos sequer direito às penas do Inferno. Sentimos que ninguém nos virá visitar, nem ao cemitério nem ao outro mundo.
Sónia estava, talvez, apaixonada, Ou antes, estava, talvez, disponível para se apaixonar. O amor é, quase sempre, uma questão de disponibilidade. No átrio da Academia de Belas Artes de Milão, poucos dias antes de a pandemia, com requintes de brincadeira de mau gosto, ter escondido em parte incerta o quotidiano normal, ela afixara um anúncio no painel de cortiça. No meio do mar de papelinhos apressados a dizer “Procura-se quarto” e “Arrenda-se quarto”, o anúncio dela, não muito maior do que os outros, destacava-se pela delicadeza, pelas cores. Assemelhava-se a uma pequena iluminura. “Procura-se modelo masculino para pintar retrato.” Saltava à vista que aquele rectângulo de cartão era fruto de longas horas de trabalho criativo. Era uma pequena obra de arte, um original, assinado no verso. Fora feito para atrair uma pessoa diferente das outras, e teve êxito. Lorenzo era, ao que tudo indicava, um rapaz diferente dos outros.
Criou-se uma rotina entre José e Sónia. Ela levava-lhe os sacos de compras do supermercado, meros pretextos para lancharem juntos. Sentavam-se à mesa da cozinha, conversavam. Sobre os livros que iam lendo, sobre a pandemia, sobre as novas facetas que as pessoas iam revelando a cada dia. A meio da conversa, às vezes no final, à despedida, ele contava como fora preso e o que lhe sucedera em Caxias, um breve fragmento de cada vez, não mais. Como se não conseguisse contar tudo de um só fôlego. Assim que ele abordava esse passado, ela remetia-se ao silêncio, limitando-se a ouvir. Percebeu que, naqueles momentos, José lhe pedia apenas isso, o que já era muitíssimo: que o ouvisse com muita atenção.
— Fui encontrar-me com o meu contacto, como sempre, a meio da Rua das Trinas, às nove da manhã. Aquilo a que nós chamávamos o “contacto” era um funcionário clandestino do Partido. Mandou-me fazer uma distribuição de panfletos, passou-mos, guardei-os no bornal. Panfletos sobre o Primeiro de Maio, em formato pequeno, de papel de arroz. E também era preciso colar nas paredes uns autocolantes grandes. Um rolo impresso com dizeres contra a Guerra Colonial, com cola no verso. Fui fazer o reconhecimento. Nunca tinha posto os pés naquele lugar, e fiquei fulo. Era aquele bairro enorme de vivendas que há entre a Avenida Rio de Janeiro e a Gago Coutinho, um bairro de malta finaça. E eu pensei: “Mas o que é que eu venho para aqui fazer com um bando de putos de dezoito e dezanove anos?” Éramos isso, afinal, putos de dezoito e dezanove anos. Ainda por cima, começo a fazer o reconhecimento e vejo que as ruas daquele bairro são circulares, não sei se conheces. A técnica de distribuição era sempre a mesma: grupos de três, um numa esquina, outro na outra e o terceiro no meio, a distribuir. Mas aquelas ruas são curvas, não têm esquinas. Fiquei lixado, mas tinha de ser. À noite, voltei lá com o resto do grupo. Era eu e duas colegas de Medicina, a Teresa, que era branca, e a Alda, que era negra. Depois vais perceber a importância deste pormenor.
“Contra o nada que avança”
Sónia vira Lorenzo muitas vezes na Academia, embora, de início, não soubesse como é que ele se chamava. Ao que tudo indicava, ele nunca reparara nela. Nunca se tinham falado. Uma vez, no meio dos jovens que subiam a escadaria de pedra, de manhã, ela vira-o de túnica branca, descalço. Da espádua esquerda assomava-lhe uma grande asa de anjo bíblico, com penas de reflexos metálicos. Na espádua direita, o coto de uma asa cortada sangrava abundantemente. O rapaz deixava na sua esteira um rasto de sangue. Ninguém parecia reparar. Foi com um misto de estupefacção e alegria que Sónia recebeu no telemóvel uma mensagem dele: “Vi o teu anúncio no painel. Guardei-o como uma relíquia. Aceito posar para ti. Lorenzo.” Sónia reconheceu-o pela fotografia de perfil do WhatsApp. Percebeu que era o mesmo rapaz que tantas vezes vira de longe, sem nunca se atrever a meter conversa com ele. Lembrou-se da asa cortada, do rasto de sangue que os outros pisavam, indiferentes. O nome agradou-lhe também, com os seus laivos renascentistas. Marcaram encontro, mas nunca se chegaram a encontrar, porque a pandemia não deixou. Ele não conhecia a aparência dela. A imagem de Sónia no WhatsApp era um retrato de Frida Kahlo.
Ela impôs-lhe uma série de provas propositadamente exigentes, a que, sabia-o bem, ele só aceitaria submeter-se caso estivesse mesmo interessado em descobrir quem ela era. Sem perversidade, somente com alguma frieza. O amor, por vezes, implica não perdermos a cabeça. Começou por lhe pedir a morada, dizendo-lhe que não queria comunicar com ele por via digital. Queria que se correspondessem por carta, palavras indeléveis escritas em folhas de papel e metidas em envelopes, a viajarem vagarosamente de um país para o outro, levadas de mão em mão. Um amor duradouro só poderia nascer de palavras duradouras. Escreveu-lhe a primeira carta em português, dizendo-lhe que assim faria doravante. Recusava exprimir-se em italiano, e muito menos em inglês, a língua dos bárbaros que, num mundo perfeito, teriam sido conquistados pelas legiões de Augusto e romanizados. Num mundo perfeito, os romanos teriam chegado à Escócia e ao lugar onde hoje se ergue Moscovo. Pediu-lhe depois que, desafiando o confinamento e arriscando-se a ser pesadamente multado, saísse de casa em plena quarentena e lhe enviasse Polaroids de graffitis e poemas colhidos nas paredes esconsas de Milão. Em resposta, ele mandou-lhe a fotografia de um graffiti que dizia: “Contra o nada que avança.” E mandou-lhe a imagem de um poema manuscrito, colado numa parede:
Os nossos encontros eram longas sessões
De olhares sorridentes
Que só interrompíamos
Para ver as horas
E era tão intensa a paixão entre nós
Que muitas vezes nos dávamos ao luxo
De nem sequer nos beijarmos.
Em nenhum momento ela cedeu à tentação de enviar a Lorenzo uma fotografia sua, de lhe dar a conhecer a sua aparência física, os traços do seu rosto. Isso, decidiu, não importava. Lorenzo teria de se apaixonar por uma ideia, por um sonho. Teria de construir a sua própria Sónia, como quem pinta um retrato imaginário, e apaixonar-se por ela.
— Começámos a meter os panfletos nas caixas do correio, nos portões das vivendas. Também metíamos nos escapes dos carros, um maço deles enrolados em charuto. Quando o carro arrancasse, eram todos cuspidos pelos ares. E colávamos os autocolantes. Puxava-se um bocado do rolo, rasgava-se no intervalo dos dizeres, lambia-se a parte de trás, colava-se na parede, tudo num instante. Ao fim de meia hora daquilo, não podia mais, estava enjoadíssimo por causa do sabor da cola. A certa altura, colei um autocolante no muro de uma vivenda e, naquele momento, a porta da casa abriu-se e saiu de lá um gordo vestido de branco, que veio direito ao portão do jardim. Escondi-me atrás de um carro, depois dei uma assobiadela para alertar as raparigas, elas esconderam-se também, deixámos que o tipo se afastasse. Mudámos de rua, continuámos mais uma hora naquilo, caixas de correio, escapes, a boca a saber horrivelmente a cola. No fim, saímos para a Avenida Rio de Janeiro. Cada um de nós tinha de apanhar um táxi, já não havia metro àquela hora. Seguimos pelo passeio, vimos carros da polícia, uma dúzia de agentes, uma operação stop. Não sabíamos se era por nossa causa, alguém podia ter avisado. Já não tínhamos panfletos nenhuns, mas tivemos medo. Não dava para voltar para trás, fosse como fosse. Virei-me para a Alda e disse-lhe: “Não leves a mal, mas tens de fazer de pau-de-cabeleira.” Um branco com uma negra daria nas vistas, e, naquela situação, não podíamos dar nas vistas. Agarrei a Teresa pela cintura, continuámos a andar, dei-lhe um beijo na boca. A verdade é que eu tinha um fraquinho pela Teresa. Ou melhor, uma grande paixão. Tinha-lhe escrito uma carta de amor nas férias de Verão de 1970, quando estava no estrangeiro, mas ela não me respondera nem nunca me falara do assunto. Se antes disso ainda sorria para mim, depois da carta passou a olhar-me sempre com uma certa frieza. Foi um momento muito constrangedor para ambos, mas não havia nada a fazer, era a melhor maneira de nos safarmos do aperto. Ainda por cima, o beijo foi horrível. Foi o pior beijo da minha vida, com sabor a cola, por pouco não cuspi para o chão. E ela atirou-me um olhar de repugnância que nunca mais esqueci, como se me dissesse: “Estás a aproveitar-te da situação, mas daqui não levas nada.” E lá fomos os três, eu agarrado à Teresa, com a Alda a reboque. Estávamos quase a passar pelos polícias, sem ninguém nos dizer nada, quando ouvi um grito atrás de nós: “São estes! São estes! Estes dois e a preta!” Nem deu para correr. Virei-me, já com dois polícias a agarrarem-me os braços, e vi o gordo de branco, com um dos nossos autocolantes numa mão e um molho de panfletos na outra. Foi em 1971, no dia 6 de Abril, às duas da manhã.
Uma lesma contra um tanque de guerra
Sónia desafiou José para um gesto público arrojado. Um gesto de resistência, de protesto, nem ela sabia ao certo como classificá-lo. Um gesto de desafio, talvez. Explicou-lhe em que consistia, e José aceitou prontamente, mas depois pensou melhor e teve dúvidas. Disse-lhe que temia que corresse mal. Não tanto por si próprio, mais por ela. “Isto pode estragar-te a vida toda”, disse-lhe. Sónia tranquilizou-o, embora ela própria tivesse muito medo, um medo que se esforçou por disfarçar o melhor possível. Treinariam os dois, disse-lhe, só executariam o gesto quando se sentissem ambos confiantes. “Faremos o reconhecimento do terreno, para estarmos bem preparados”, explicou-lhe, piscando-lhe o olho. Pediu emprestados ao Henrique, que praticava tiro com arco e era atleta federado, o arco e as flechas, e ainda a luva. Quando ele lhe perguntou para quê, ela disse-lhe que era segredo, que a seu tempo lhe diria. De início, ela e José passaram horas a fio a puxar a corda do arco, de luva calçada, sem usarem as flechas, só para se habituarem à resistência do material, para os seus braços e mãos se familiarizarem com a postura. Ao fim de alguns dias, começaram a usar as flechas. Por precaução, José fechava o gato no quarto, não fosse haver um acidente. A corda retesava-se, as pontas do arco dobravam-se com um vago rangido, a flecha deslizava aos poucos entre os dedos da mão esquerda de Sónia, com que ela segurava o arco. Em seguida, era a vez de José. Era importante fazerem do arco e da flecha uma mera extensão dos seus corpos.
— A sala era no Reduto Sul de Caxias. Tinha uma mesa e duas cadeiras, mais nada. E muita luz, sempre. E tinha dois anexos, com as portas sempre abertas, uma casa de banho com chuveiro e um quartinho com uma cama. Uma tentação permanente, para me fazer fraquejar. No primeiro dia não me fizeram nada, só não me deixaram dormir. Os pides iam-se revezando, diziam-me: “Fala, pá, resolve-se o assunto e vais-te embora para casa.” No segundo dia, à noite, entrou um pide chamado Santos Costa, de chicote na mão, e desatou a chicotear-me, aos berros, a chamar-me nomes. As chicotadas doíam, mas os insultos também. Ninguém está habituado a que lhe chamem filho da puta e cabrão, aos gritos, sem poder reagir, sem poder responder à letra. No dia seguinte, de manhã, entrou um pide com ar de sessenta e tal anos, de óculos, baixo, cabelo meio grisalho, dentes saídos, um aspecto repelente. Disse-me que eu devia falar, que era melhor para mim, todo falinhas-mansas. Que eu era uma lesma a lutar contra um tanque de guerra, mais nada. Para quê estragar a vida, um rapaz tão novo, um futuro doutor, para quê? Passadas umas horas entrou outra vez o Santos Costa e desatou a bater-me ao murro e ao pontapé. Quando se cansava, parava um bocado para ganhar fôlego e dizia-me: “Gosto muito de ser polícia e, se tu saíres daqui sem falar, eu demito-me da PIDE. Portanto, só tens uma maneira de sair daqui sem falar, que é num caixão. Quando andares aí de rastos pelo chão, vais ver se não falas.” E depois tornava a bater-me, mais murros e pontapés. Horas nisto, até que se fartou e saiu, sempre a ameaçar-me.
Este sabor horrível na língua
José escondia o arco e as flechas debaixo da cama, dentro do respectivo estojo, para que a filha, nas suas visitas lá a casa, não encontrasse aqueles objectos. Amarravam o arco a uma cadeira da cozinha, sentavam-se noutra cadeira, posta diante da primeira, e revezavam-se a retesar a corda com uma flecha lá enfiada, usando uma só mão, com o outro braço inerte, estendido ao longo do corpo. Cronometravam o tempo que demorava até não aguentarem mais e a flecha partir. José encontrara junto ao ecoponto uma velha tábua de contraplacado, bastante grossa. Trouxe-a para casa. Na visita seguinte, Sónia trouxe as tintas e os pincéis e pintou na tábua um grande alvo colorido. Não resistiu a colar-lhe no meio uma fotografia do Trump. Encostavam a tábua à porta do frigorífico, e a flecha, ao partir, ia cravar-se na madeira com um estalo seco. Arrancavam a flecha, recomeçavam. Às vezes acertavam no Trump, outras não.
— Na noite do quinto dia sem dormir, apareceu o bicho. Andei a noite toda a passear na sala e, de vez em quando, o tal bicho, que nunca cheguei a ver, saltava-me para as costas e cravava-me as unhas, e eu então atirava-me de costas contra a parede para o enxotar e ele fugia, escondendo-se não sei onde. Via as unhas dele, agarradas ao pé da mesa, mas sempre do lado contrário ao meu, e nunca percebi que género de bicho seria. No sexto dia entrou o tal tipo repelente e pôs-se com a conversa mole do costume, a dar-me graxa. E depois disse-me: “Mas, ó doutor, veja lá, se um dia me apanhar nas urgências do hospital, veja lá o que me faz. Não se esqueça de que eu o tratei bem aqui dentro.” Chamei-lhe porco e disse-lhe que, se alguma vez o apanhasse nas urgências, dava cabo dele, metia-lhe veneno nas veias com uma injecção. Depois cuspi-lhe na cara e deitei-lhe as mãos ao pescoço. Abriu-se logo a porta, entraram outros, bateram-me, deixaram-me caído junto a uma ficha eléctrica. Arranquei a tomada da parede e pus-me a conversar com ela.
Sónia pediu a Lorenzo uma nova prova de amor. No mesmo dia e à mesma hora em que ela e José executassem a “acção”, como agora designavam o gesto longamente ensaiado, ele deveria, numa rua movimentada, no local preciso de Milão que ela lhe apontou, cumprir à risca as instruções dela. Temendo os atrasos dos correios, teve o cuidado de mandar a carta com um mês e meio de antecedência, registada e com aviso de recepção. Assim, daria tempo a Lorenzo para se preparar. O amor é, às vezes, uma questão de método.
Foi no dia aprazado que José, antes de saírem de casa, completou a sua narrativa, afagando o gato que se lhe aninhara no colo. Normalmente, nos momentos em que falava daqueles dias tão difíceis da sua vida, ele mostrava-se um tudo-nada tenso, ainda que a iniciativa de contar tivesse partido inteiramente dele e Sónia nunca lhe tivesse feito nenhuma pergunta. Naquele dia, porém, ele parecia descontraído. Talvez a iminência do que iam fazer a seguir o tranquilizasse.
— Vou contar-te como a tortura acabou lá em Caxias. Não te esqueças de que eu tinha arrancado a tomada da parede e conversava com ela. Disse à tomada: “Estes gajos vão pagar-mas todas. Com que então têm medo do que eu lhes faça quando tiver o canudo? Vão ver... se apanho um deles nas urgências ou no hospital, dou cabo dele com requintes de malvadez. Sai de lá estropiado.” Esta ideia deu-me força. Estava tão cansado, tinha tantas dores, que tudo o que me ajudasse era bem-vindo. E aquela promessa de poder absoluto, de desforra, deu-me alento. Mas a tomada eléctrica transformou-se num rosto humano, que me disse: “Se fizeres isso, és como eles. Ou antes, és pior do que eles, porque eles não enganam ninguém.” Mandei calar aquele rosto, mas depois vi que era o rosto da Teresa, ali deitada ao meu lado, que me disse: “O fascismo mete-se em nós, Zé. O fascismo é este sabor horrível na língua, este beijo enjoativo, cheio de cola, um beijo na boca dado à força numa rapariga, é esta agonia que vem de dentro de nós. Tens de lutar contra os pides e tens de lutar contra o fascista que tens dentro de ti.” E eu disse-lhe: “Não consigo travar duas lutas ao mesmo tempo. Uma luta de cada vez.” E a Teresa afastou-se de mim, e os olhos dela eram os buracos da tomada, e disse-me: “Não. As lutas que adiamos nunca mais se travam. Tem de ser já.” Estiquei o braço para a enlaçar pela cintura e toquei na parte de trás da tomada e levei um esticão, dei um berro e a alucinação desfez-se. E pensei: “As duas lutas ao mesmo tempo, tem de ser. Mesmo que apanhe um pide destes nas urgências, mesmo que seja o Santos Costa, mesmo que seja o tipo dos dentes saídos, não lhes faço mal. Trato-os como se fossem meus irmãos.” E... sabes? Acabou por ser esta ideia que me deu forças para aguentar.
A flecha apontava para o coração
O gato saltou para cima da mesa da cozinha, como se também ele percebesse que a história estava prestes a chegar ao fim. José levantou-se, sacudindo da camisola o pêlo do gato.
— Foi esta ideia que me deu alento: imaginar um daqueles gajos deitado numa maca, a ter um ataque cardíaco, e eu a salvar-lhe a vida, a dar o meu melhor. Cada vez que um deles me batia ou dava uma palmada na mesa para não me deixar dormir, era esta imagem que me vinha à cabeça. No máximo, imaginava-me a espetar-lhe a agulha da seringa com um nadinha mais de força do que o necessário. — Riu-se, piscou o olho a Sónia. — E foi assim. Aguentei-me, não abri a boca, não assinei nada. Ao fim de nove dias e oito noites consecutivas sem dormir, levaram-me para a cela e deixaram-me dormir. Fui a tribunal, condenaram-me, mas não falei e não me torturaram mais.
Em Milão, Lorenzo saiu de casa à hora marcada. Levava consigo o objecto que Sónia mencionara na carta: a armação metálica de uma mesa de escritório, baixa e comprida, com os respectivos pés, mas sem o tampo de fórmica, que desaparafusara. Chegou à agência bancária, em cujo rebordo de pedra, diante da vidraça, havia espigões metálicos aguçados para impedir os sem-abrigo de ali se deitarem. Pousou a armação naquele lugar, encaixando os pés metálicos nos hiatos entre os espigões.
Quando José e Sónia, prontos a sair de casa, chegaram à porta do apartamento, José deteve-se diante da grande fotografia a preto-e-branco tirada em Caxias, no dia da libertação dos presos, e fitou a sua própria imagem, tão jovem. Sónia trazia a tiracolo o estojo contendo o arco e as flechas.
— Lutar contra o vírus não chega — disse José, voltando-se para ela, já com a mão no trinco. — Temos de travar várias lutas ao mesmo tempo, todas elas de vida ou de morte. E travar uma delas sem travar as outras é inútil e perigoso. Não vale de nada vencer o fascismo e deixar o fascismo a medrar dentro de nós. É um suicídio. Vencer o vírus e deixar a sociedade exactamente igual ao que estava antes é um suicídio ainda pior.
Subiram a rua, a caminho do metro, e viram um homem dentro de um prédio, no átrio envidraçado, diante dos elevadores, com um cãozito minúsculo ao colo, um chihuahua. O desconhecido mantinha o bicho erguido à altura do ombro, numa postura pouco cómoda, e, com o braço livre, mexia-lhe nas patas com gestos de lavagante laborioso. De relance, Sónia não percebeu o que o homem estaria a fazer. Só três segundos depois entendeu: o fulano estava a desinfectar as patas do animal com toalhetes e álcool.
Apanharam o metro, saíram para a luz do dia. Entraram no Rossio. Era ao final da tarde. Sem carros, sem turistas, sem pessoas atarefadas a caminho dos barcos da Transtejo e da estação do Rossio, sem a debandada quotidiana para os subúrbios, o Rossio tinha qualquer coisa de estúdio cinematográfico vazio, votado ao abandono depois de terminadas as filmagens. Na colunata do D. Maria II, uma chusma heteróclita de sem-abrigo agitava-se, expectante, pessoas a quem a pandemia entregara o usufruto absoluto das ruas de Lisboa como um presente envenenado. Uma cidade só para eles, é certo, mas semelhante a um brinquedo escangalhado, sem préstimo nenhum. Reduzidos a viver das sobras alheias, nada os preparara para aquilo: um mundo subitamente avaro das suas migalhas, um carrossel parado, ao abandono, coberto por oleados poeirentos. Nos passeios via-se uma pequena multidão. Eram outros sem-abrigo, dezenas e dezenas deles ali amontoados à espera das carrinhas de distribuição da comida, como animais ferozes atrás das grades, à espera dos tratadores que, à hora marcada, lhes atiram a ração para dentro da jaula.
Em Milão, Lorenzo olhou para o relógio e, com gestos cuidadosos, metódicos, estendeu-se de costas sobre a armação metálica. Não era fácil. Em casa, também ele treinara muito aquele gesto, ensaiara-o com cuidado. Apoiou a nuca numa das barras metálicas transversais, as barrigas das pernas na outra. A distância entre as barras longitudinais permitia-lhe apoiar o corpo, mas não lhe permitia descontrair-se. Teria de ficar assim, tenso, durante uma hora. Se fraquejasse, cairia sobre o leito de espigões metálicos, abaixo de si.
Na colunata do D. Maria II houve um tumulto, gritos, o som de pancadas. Um homem caiu no chão e logo foi rodeado por outros homens e mulheres agachados. O agressor, um negro em tronco nu, afastou-se, perseguido por uma mulher que gritava muito alto, insultando-o. O negro virou-se e fez-lhe frente, começaram a esmurrar-se os dois. O homem caído no chão começara a ser sacudido por convulsões. Indiferentes ao tumulto, à algazarra, aos gritos, sem nada verem do que se passava à sua volta, Sónia e José, no extremo oposto da praça, executaram metodicamente os gestos programados. Ela olhou para o relógio, viu que eram horas, tirou o arco do estojo, passou-lho para as mãos. José segurou o arco com a mão esquerda, deixando o braço direito pender ao longo do corpo. Ela calçou a luva, prendeu a flecha na corda com a mão direita, agarrando-lhe a extremidade posterior com um gesto firme, e deixou pender o braço esquerdo. Olharam-se nos olhos. Reinava entre ambos uma confiança absoluta. Firmando bem os pés na calçada portuguesa, cada qual, muito devagar, deixou pender o tronco para trás. Agora, eles os dois, unidos pelo arco e pela flecha, formavam um conjunto harmonioso, tenso, em suspensão. A flecha, presa na corda retesada, apontava para o coração de José. Qualquer distracção, qualquer gesto em falso de um deles faria disparar a flecha e poderia matá-lo. Os poucos transeuntes e a massa dos sem-abrigo, que, movidos pela curiosidade, haviam posto fim à refrega, foram-se reunindo em volta deles num grande círculo, expectantes e siderados. O homem que, pouco antes, se debatia em convulsões, estendido no chão, erguera-se e caminhava, trôpego, ao encontro do aglomerado, atravessando a praça sem trânsito.
Estendido na armação metálica, Lorenzo começou a vislumbrar, pelo canto do olho, as pessoas que se reuniam para o observar. Mas não voltou o rosto, porque não podia, nem por um momento, distrair-se. Fechou os olhos. Pensou em Sónia. Imaginou o rosto dela, que nunca vira. Estava apaixonado.
No Rossio, a multidão em volta de José e Sónia engrossava a cada momento. Reinava ali um grande silêncio. Só os pombos batiam as asas de vez em quando. Ao verem aquela jovem e aquele idoso assim unidos num gesto arrojado, todas as pessoas perceberam que assistiam a um gesto importante, a um momento decisivo. Era, talvez, o começo de uma revolução.
Paulo Faria
18 de Maio de 2020
paulo.almodovarfaria@gmail.com