A pandemia mudou o modo como a Alemanha olha para dívida e investimento — mas quanto?

Uma nova geração de economistas e um Ministério das Finanças dominado pelo centro-esquerda prepararam um caminho que a crise do coronavírus tornou inevitável. Se irá continuar, é uma incógnita.

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Angela Merkel EPA

A Alemanha é um país que levou o “zero negro” — orçamento sem dívida — a um ponto de quase fetiche, e onde num artigo sobre se o país precisava “mesmo” de contrair dívida para financiar investimentos, o ministro das Finanças que defendia a ideia era representado num grande jornal nacional com colares e dentes de ouro. Mas isto foi há alguns meses, porque perante uma potencial catástrofe, o discurso mudou. 

Já é possível falar de grandes pacotes de investimento e para isso foi essencial um Ministério das Finanças liderado por Olaf Scholz e dominado pelo SPD, e ainda da entrada no debate de uma nova geração de economistas, que estudaram em universidades anglo-saxónias e francesas, de onde trouxeram ideias diferentes, aponta, numa conversa telefónica com o PÚBLICO, o economista chefe do Center for European Reform, Christian Odendahl.

Após a aprovação do grande pacote alemão de investimento para fazer face à crise, a própria chanceler, Angela Merkel, disse simplesmente: “Se não fizéssemos nada, a dívida pública iria acabar por ser muito mais alta.” Para Odendahl, houve “uma pragmatização do debate”.

Nos últimos seis anos, o Governo vinha a fazer das contas equilibradas particular motivo de orgulho. Quando o antigo ministro das Finanças Wolfgang Schäuble saiu do cargo, os trabalhadores do Ministério dispuseram-se numa oval vestidos de preto: um “zero negro” em agradecimento pelo equilíbrio nas contas públicas. A pouca apetência para contrair dívidas é uma das características mais apontadas aos alemães, e ficou cristalizada em termos de política orçamental sob a chanceler Angela Merkel. 

Agora, o Governo de Merkel aprovou um pacote de medidas de cerca de 500 mil milhões de euros para fazer frente às consequências económicas e sociais da pandemia, em dois orçamentos suplementares prevendo um total de 218 mil milhões de euros de dívida, o maior valor de sempre da história da República Federal (e um montante cinco vezes maior do da crise de 2010), aponta a emissora Deutsche Welle. Levará, estima-se, 20 anos a pagar.

Em vez de críticas, recebeu elogios: foi um pacote “arrojado”, “corajoso”, descreveram os media. O jornalista especializado em economia do semanário Die Zeit Mark Schieritz enumerava alguns pontos como prova da mudança no debate alemão: “conservadores a falar de gastar dinheiro como investimento, minimizando preocupações com a dívida, considerando cortes fiscais de curto prazo para estimular a economia, definindo justiça entre gerações não só como poupar dinheiro para o futuro mas investir...”

Apoio de 75% a investimento

Será que os alemães perderam o seu medo da dívida? “Penso que ainda é demasiado cedo para responder”, contrapõe Christian Odendahl. “A maioria dos alemães percebeu que a sua posição orçamental mudou muito de há dez anos para cá, quando havia medo que a dívida estivesse fora de controlo”, diz. “Agora, percebem que as finanças do Governo estão muito sólidas, e que mesmo que seja preciso gastar muito na crise do coronavírus para salvar a economia, isso vai acabar por sair mais barato do que, enfim, não gastar nada.”

As sondagens mostram que 75% dos alemães concordam com o investimento mesmo que implique endividamento. Até entre os apoiantes do Partido Liberal Democrata (FDP), que é em geral grande opositor de medidas deste género, mais de metade aprova o gasto. Aliás, o FDP continua em queda nas sondagens e se as eleições fossem hoje teria entre 4 e 7%, podendo assim não chegar aos 5% suficientes para assegurar representação parlamentar (e descendo dos 10% obtidos em 2017).

Mas também “há a narrativa de que nós, na Alemanha, podemos suportar este grande programa de apoio e estímulo porque fomos muito prudentes e austeros nos anos anteriores”, sublinha Odendahl. “E se essa narrativa ganhar, e se depois da crise do coronavírus a questão for se a Alemanha devia pagar a sua dívida pública tão rapidamente quanto fez antes da crise, então talvez voltemos à posição onde estávamos antes, e a Alemanha continue a ter uma política orçamental relativamente restritiva.”

Apesar de tudo, Odendahl nota que antes da pandemia, dois institutos, um ligado às empresas e outro aos sindicatos, apresentaram um grande plano de investimento a dez anos que “recebeu bastante atenção”. O director do IW (ligado aos empregadores) Michael Hüther contrariou o argumento contra o investimento porque este deixaria dívida para as gerações futuras, sublinhando como os juros negativos mudaram o quadro. “Neste momento, o Estado ganha mais quando contrai nova dívida. Se o Governo não está a fazer isto para financiar mais investimento público, está simplesmente a perder.” E ao não aproveitar a oportunidade para investir agora, “está-se a carregar a próxima geração com necessidade de investimento ainda maior”. 

E na Europa?

A aprovação do pacote de investimento alemão seguiu-se à iniciativa franco-alemã para um pacote europeu de 500 mil milhões a fundo perdido. “Depois de concordar com um grande pacote de investimento europeu, o Governo alemão concorda com um grande pacote de gasto doméstico. Quem diria”, comentava no Twitter o correspondente da britânica The Economist em Berlim, Tom Nuttall.

Tudo, nota Odendahl, com a maioria dos políticos, comentadores e economistas a posicionar-se a favor deste instrumento europeu: “no debate público alemão seria muito difícil estar contra este instrumento sem ser considerado anti-europeu”, diz.

O Financial Times chega a ver na trajectória iniciada pelos economistas do SPD no Ministério das Finanças em Berlim o sinal de que a atitude de “falcão” de Berlim na União Europeia mudou.

Odendahl discorda. “Para esta crise, houve uma disponibilidade para fazer, num caso único, uma transferência orçamental para o Sul. Se houve uma mudança mais permanente? Não é claro. Porque as vozes conservadoras na Alemanha, mas também noutras partes da Europa, vão assegurar-se de que esta nova geração de programa é uma instituição temporária, e não uma mudança permanente”.

O economista chefe do Center for European Reform diz que ainda assim houve uma mudança, ainda que mais pequena: “Se há uma questão a que esta crise respondeu foi que numa crise muito grave, resultado de um claro choque exógeno, a Alemanha está disposta a concordar com transferências fiscais pontuais.” Para o futuro, mesmo que não haja nenhum instrumento permanente, fica “o princípio de que numa crise muito grave Alemanha e França põem em marcha um mecanismo numa base ad-hoc”. Ou seja, “ficou estabelecido que vai haver um seguro orçamental para crises catastróficas”, diz Odendahl. E “essa é uma questão para a qual, há dois meses, muitos não responderiam de modo positivo”. Mas ir além disso e ver uma mudança maior de política... “não tenho a certeza”, diz.

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