O recinto da Presença estava cheio. A fila começava bem lá em baixo, numa pequena banquinha verde alface, montada desde o início de Junho para acomodar as sessões de autógrafos organizadas pela editora. Naquele dia, a multidão ocupava o lado esquerdo do Parque Eduardo VII. Apertei com força a mão do meu pai, não fosse eu perder-me no meio daquela confusão. Que chatice, pensei. Só queria comprar mais um livro para ler durante o Verão.
Lembro-me de lhe perguntar porque é que havia tanta gente e de o meu pai me responder que o signatário do dia se tratava de um dos únicos dois homens que havia trazido um Prémio Nobel para o nosso Portugal. Não me recordo se já sabia o que era um Nobel naquela altura. Sei que ele me fez lembrar uma tartaruga e que disse ao meu pai, toda entusiasmada, que os livros dele deviam ser “mesmo bons”. O meu pai confirmou. Depois disso, nunca tive problemas em arranjar-lhe prendas de aniversário. Nesta casa, um Saramago nunca falha. Sabia lá eu que todos os livros que lhe dei iam acabar por servir para mim também.
Três anos mais tarde, estava a jogar Risco no tapete da sala, ao lado da televisão. Era um dia 18 como qualquer outro, até que é anunciado na televisão que José Saramago havia morrido. Eu tinha dez anos. Ainda não lera nada da sua autoria para além do conto infantil sobre a maior flor do mundo, e nem me recordava bem sobre o que tratava. Mas lembrava-me vivamente do momento em que passara por ele na Feira do Livro. E, apesar de estarmos longe de ter uma ligação, a sua morte impactou-me de uma forma estranha. Vi as notícias até ao fim e não quis jogar mais. E é engraçado como, mais tarde, soube que muita gente da minha faixa etária sentiu o mesmo.
No 10.º ano, decidi aventurar-me numa das suas obras (de arte). Comecei por uma óbvia: o Ensaio sobre a Cegueira. Houve quem me avisasse que a escrita era chata e difícil de ler, mas fui curiosa o suficiente para decidir experimentar por conta própria. Não demorei a perceber que tinha feito a escolha certa. Em 12 anos de escolaridade obrigatória, aos quais se acrescem três bonitos anos na faculdade, foi sobre ele que realizei um dos meus trabalhos predilectos. Permitiu-me conhecer o livro a fundo, e descobrir nele a subtileza com que podem ser partilhadas reflexões de uma complexidade assustadora.
Aí, descobri um exemplo enquanto escritor e, acima de tudo, enquanto pessoa. Com 15 anos, após muitas das minhas amigas terem passado por fases de fangirling, sem qualquer sucesso em me aliciar, finalmente encontrara alguém que valia a pena admirar. Uma pessoa humana, humilde, que concilia genialidade com simplicidade, franqueza com poesia, e que tem o poder de me tocar com cada palavra sua, escrita ou falada. É impressionante como Saramago tem a ideia de começar a escrever apenas aos 60 anos, após “[se perguntar a si] mesmo se realmente tinha alguma coisa para dizer que valesse a pena”. Deixou para a eternidade a prova de como nunca é tarde para mudarmos o rumo da nossa vida; e que raízes tão humildes como a Azinhaga não impedem um legado de chegar a Estocolmo.
Dez anos se passaram desde a “morte” de José Saramago. Mas a beleza de ser artista é que não se morre nunca. A visão da humanidade espelhada na sua obra, que engloba tudo desde o perturbador ao mais puro, manter-se-á eternamente actual. E Saramago continuará vivo através de cada uma das suas palavras. Afinal, não podia ele subir para as estrelas, se à terra pertencia.