Histórias da Construção Europeia [6/6]: A reconquista do projecto europeu e o Tratado de Roma
A nossa História é toda feita por homens, uns que nos projectaram no futuro, outros que nos lançaram no poço do inferno. E o certo é que, se não tivesse existido Jean Monnet, não teríamos hoje a União Europeia que conhecemos. Sexto e último capítulo da série “Histórias da Construção Europeia”, do economista José Veiga Sarmento.
Após o fracasso do projecto da Comunidade Europeia de Defesa, Monnet, disposto a lançar um movimento de opinião que suportasse o desenvolvimento da Europa com novas e mais abrangentes instituições, abandona a presidência da CECA. Regressa a Paris e instala-se, a título pessoal, num pequeno escritório, com um telefone, uma secretária e alguns colaboradores. Com Monnet em Paris, a campanha pela Europa vai recomeçar e o nome da sua nova organização não era para deixar dúvidas: Comité de Acção para os Estados Unidos da Europa.
Monnet vai percorrer um longo caminho das pedras, utilizando a sua infindável lista de contactos, falando com dirigentes de partidos e de sindicatos, convidando-os a aderir ao Comité. Na Alemanha, onde já contava com o apoio da CDU de Adenauer e dos sindicatos, vai obter uma vitória essencial com a adesão dos sociais-democratas, até aí inimigos declarados da Europa. O Comité vai crescer até cerca de 30 associados que se irão encontrar, a partir de Janeiro 1956, em reuniões gerais – realizadas em diferentes capitais europeias – onde discutem e aprovam iniciativas sobre as quais se tinham debruçado nos meses anteriores. Era curioso ver, nessas reuniões, líderes que habitualmente se digladiavam na arena política, sentados à volta da mesma mesa, assinando acordos que iriam lealmente defender nos Parlamentos ou nos Congressos sindicais onde participavam. Ministros, ex-ministros, futuros ministros e líderes sindicais, entre os quais estiveram Willy Brandt, Edward Heath, Helmut Schmidt, Pietro Nenni e Guy Mollet, encontraram no Comité um entendimento comum sobre temas que a todos diziam respeito.
Um dos primeiros temas tratados no Comité foi a utilização industrial da energia atómica. O objectivo era não deixar a Europa para trás na utilização de uma tecnologia que iria mudar a supremacia das indústrias clássicas assentes no carvão e no aço. O projecto que irá nascer, na linha institucional da CECA, irá alargar o âmbito e a experiência comunitária a mais um mercado comum. A intenção era a de que a utilização de combustíveis nucleares, crucial para contrabalançar a dependência do petróleo, não se desenvolvesse numa concorrência de base nacional. Para o apoio político a esta iniciativa muito contribuiu a crise do Suez, em que as potências europeias foram confrontadas com a evidência da sua dependência política e energética. Nascia assim o projecto do Euratom.
Os trabalhos no seio do Comité para a construção de um Tratado para a energia atómica foram desenvolvidos em paralelo com um outro objectivo, o de alargar o conceito de mercado comum para além do carvão, do aço e do urânio, passando a abranger a generalidade da economia. Este salto ‘quântico’ teve a ver, uma vez mais, com a dialéctica franco-alemã, porque se para os franceses o tema do nuclear era apelativo e a questão do mercado comum lhes levantava muitas suspeições, para os alemães era exactamente o contrário: a intromissão na actividade das empresas alemãs no domínio do nuclear era incomodativa, mas a perspectiva de um espaço económico livre era algo muito aliciante. Monnet irá promover a síntese.
Os dois Tratados, o Euratom e o do Mercado Comum, serão assinados em Roma no dia 25 de Março de 1957 pelos mesmos seis países signatários da CECA. Segue-se depois a corrida difícil da ratificação parlamentar, num período em que ocorriam mudanças de maiorias eleitorais na Europa. A aprovação na Alemanha aconteceu a 5 de Julho com o apoio da CDU democrata-cristã, dos sociais-democratas e dos liberais. Alguns dias depois, o Parlamento francês dá também a luz verde (342/239), apesar da já proverbial oposição dos comunistas e gaulistas que se mantinham numa frente unida contra a Europa de Jean Monnet. A ratificação ocorre depois em Itália (311/144) e o último a ratificar vai ser a Holanda, já em Dezembro de 1957. Nos respectivos Parlamentos, todos os partidos membros do Comité de Acção para os Estados Unidos da Europa votaram favoravelmente os novos Tratados.
Passou-se à constituição das equipas das novas entidades. O alemão Walter Hallstein (pioneiro com Monnet na CECA) preside ao Mercado Comum e o engenheiro francês Louis Armand fica no Euratom. Monnet considerava que a sede destas instituições deveria ser num único local de fácil acesso para todos e onde se pudesse instalar um “Distrito Europeu”. Queria, no fundo, tentar evitar a repetição da confusão de 1952, quando da escolha da sede para a CECA, que, de provisória, acabou definitivamente no Luxemburgo. O resultado foi misto, pois a CECA ficou no Luxemburgo e as restantes instituições foram sendo colocadas entre Bruxelas, Luxemburgo e Estrasburgo.
A França de Janeiro de 1958, depois de anos de instabilidade política e de uma guerra perdida na Indochina, está numa situação muito difícil. O Governo francês pede a Monnet que, uma vez mais, vá negociar um grande empréstimo aos Estados Unidos, mas ele exige, como condição, a aprovação de um rigoroso plano de austeridade para servir de colateral ao empréstimo. Monnet vai assim conseguir obter dos americanos a concessão de mais um empréstimo de 650 milhões de dólares, que, no entanto, já não vai servir à 4.ª República. Com o desaire da guerra na Argélia, o sistema político cai de inanição, sendo o poder entregue ao general De Gaulle, que se tinha voluntariamente colocado na reserva da Pátria desde que havia saído, em 1946, do Governo provisório do pós-Guerra. Será, por isso, a nova 5.ª República, presidencialista e sufragada por plebiscito, que irá beneficiar deste apoio financeiro.
De Gaulle nunca tinha, no passado, perdido uma ocasião para criticar o projecto europeu e contrapunha-lhe a sua muito própria visão da Europa que, acreditava, deveria ser uma justaposição de Estados, do Atlântico aos Urais, sem governos supranacionais. O problema é que De Gaulle nunca explicou como tal ideia seria posta em prática.
Apesar deste vento adverso, o barco europeu estava em andamento, dispensando o empenho de De Gaulle, que se referia a Monnet depreciativamente como “o inspirador”, ou “o cardeal”. O Mercado Comum tinha-se tornado num objectivo imparável e as metas para o desarmamento alfandegário iam sendo consecutivamente antecipadas com grande entusiasmo. A reputação mundial das instituições em Bruxelas funcionava como uma protecção face às investidas do novo Presidente francês. Monnet continua a dinamizar o seu Comité de Acção para os Estados Unidos da Europa, mas procura adequar os ambiciosos objectivos de uma Federação com algo suportável por De Gaulle. É, no entanto, inevitável o começo de uma difícil hibernação da ideia europeia; só a sorte – e o pragmatismo de uns e de outros – permitiu limitar os danos, evitando a implosão de tudo o que tinha sido adquirido.
Apesar dos cuidados de Monnet, a Comissão Europeia, constituída por comissários ardentemente federalistas, entra, em 1965, em conflito directo com De Gaulle. O diferendo residia na proposta da Comissão de que os direitos alfandegários constituíssem receita comunitária para financiar a PAC (Política Agrícola Comum). De Gaulle considera essa federalização insuportável e ameaça a Comissão que, por seu lado, insiste na proposta. O resultado é o abandono da França do executivo das Comunidades, a paralisação da iniciativa comunitária e a posterior diminuição dos poderes da Comissão. E como se a barreira gaulista à Europa não bastasse, De Gaulle vai proibir os seus ministros de falarem com Monnet.
A sobrevivência das instituições europeias ficou então a cargo da Alemanha, que não alinhou na deriva nacionalista de De Gaulle. O chanceler Erhard afirmou publicamente:
“O povo alemão aprendeu à sua própria custa que uma política de poder, inspirada por sentimentos nacionalistas exacerbados, está destinada ao fracasso porque toda a ambição hegemónica por parte de uma das nações europeias suscita a oposição de todas as outras. Nós temos a consciência perfeita de que a Europa não pode ser alemã, francesa ou russa, mas sim que deve ter como objectivo a união e a conciliação”.
Como profetizava Monnet, instituições fortes sobrevivem aos homens, mesmo àqueles que são muito fortes como era o caso de De Gaulle. A CEE não fugiu à regra e após a saída do general, em 1969, o projecto europeu vai encontrar novos actores para meter em marcha a ideia de que é possível encontrar na Europa valores de Comunidade que não existiam na memória das Nações. Giscard e Schmidt, nos difíceis anos 70, foram europeístas convictos apesar de não serem grandes federalistas. Foram, no entanto, Mitterrand e Kohl que, nos anos 80 e 90, apoiados na direcção de orquestra de Jacques Delors, verdadeiro herdeiro de Jean Monnet, vão repor o comboio em movimento. Completa-se assim o Mercado Único, surge o Euro e, entre muitos outros contributos, nasce o Erasmus. Quanto ao alargamento à Inglaterra congelado por De Gaulle em 1964, ele acabará por ocorrer em 1973 com a entrada da Inglaterra, Irlanda e Dinamarca. Segue-se a Grécia e depois Portugal e Espanha. Com o fim do império soviético, tornam-se membros quase todos os países do Leste.
Monnet já não vai ver estes últimos desenvolvimentos. Retirando-se para a sua casa de campo em 1975, dedica-se a escrever as suas memórias com o apoio do seu amigo e colaborador de longa data, François Fontaine. Monnet morre em 1979 com 90 anos. Valéry Giscard d’Estaing, Presidente da França, e Helmut Schmidt, chanceler da Alemanha, prestam-lhe as suas últimas e sentidas homenagens.
Dos inúmeros cumprimentos e elogios que recebeu ao longo da sua vida, Monnet regista com especial orgulho as palavras que Kennedy lhe enviou umas semanas antes de ser assassinado:
“Estimado Senhor Monnet,
Durante séculos, os imperadores, os reis e os ditadores procuraram impor à Europa a sua unidade pela força. Para o melhor e para o pior, todos eles fracassaram. Mas pela vossa inspiração, em menos de vinte anos, a Europa progrediu no sentido da unidade que tinha perdido há dois mil anos.”
Destas notas históricas, pode ressaltar a impressão de que, sem Monnet, não teríamos hoje a União Europeia e que esta é o resultado do projecto de um indivíduo que encontrou uma forma de o impor aos outros. O certo é que, se não tivesse existido Jean Monnet, não teríamos hoje a União Europeia que conhecemos. A nossa História é toda feita por homens, uns que nos projectaram no futuro, outros que nos lançaram no poço do inferno. E todos os grupos humanos têm os seus heróis, obreiros da construção à qual hoje se orgulham de pertencer, seja porque, sendo guerreiros, impuseram através da força a existência de uma entidade, seja porque foram apóstolos de uma religião que moldou o cimento da sociedade.
Em Portugal, as nossas referências são, entre muitos outros, D. Afonso Henriques, Santo Agostinho, Nuno Álvares Pereira ou São Francisco Xavier. Uns usaram a violência para impor a existência da comunidade a que pertencemos, outros iluminaram-nos com a religião que nos enforma. O que temos, o que somos, a eles devemos. Não tivessem eles existido e nós não seríamos os mesmos. Mas hoje somos também parte de uma Comunidade de 500 milhões de cidadãos livres, assente em valores morais que respeitam, acima de tudo, a liberdade de todos, a nossa e a dos outros. E isso devemos ao trabalho da vida de um cidadão chamado Jean Monnet.
O futuro, esse, depende unicamente de nós.
Escrito a partir das memórias de Jean Monnet