Precários da Casa da Música denunciam “recibos verdes” com turnos de 16 horas e “falta de vontade” para resolver o problema
“Prestadores de serviços” alegaram esta tarde no Parlamento que há um historial de irregularidades laborais na instituição e garantiram que “a falta de diálogo não é de hoje”. Técnicos e assistentes insistiram que há uma perseguição contra os colaboradores que têm protestado publicamente.
Técnicos de palco, assistentes de sala e músicos formadores da Casa da Música (CdM) queixaram-se esta quarta-feira, perante os deputados das comissões parlamentares de Trabalho e Segurança Social e de Cultura e Comunicação, da “falta de vontade” do conselho de administração da instituição para regularizar as suas situações contratuais, denunciando que há precários que ali prestam serviços “há 15 anos” enquanto “falsos recibos verdes” – alguns dos quais, em cenários mais extremos, trabalhando “16 horas por dia”. As declarações surgiram um dia depois de o presidente da instituição, José Pena do Amaral, ter dito, também na Assembleia da República, que não existem casos de falsos recibos verdes dentro da fundação e que quaisquer “irregularidades” nos contratos serão “corrigidas sem qualquer problema”, contanto que sejam detectadas pelo inquérito que a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) tem em curso.
Foram seis os trabalhadores que se pronunciaram na audição, numa ilustração dos “diferentes tipos de actividades que a Casa acolhe e das diversas situações de desprotecção a que os seus trabalhadores estão expostos”, conforme avançou Fernando Pires de Lima – funcionário do quadro que, em “solidariedade” para com os precários que tiveram os seus rendimentos “significativamente reduzidos ou transformados em zero” durante a paragem provocada pela pandemia, foi “um dos principais promotores do abaixo-assinado” que, no fim de Abril, tornou público o clima de insatisfação vivido dentro da CdM.
Fernando Pires de Lima criticou Pena do Amaral por sugerir que os mais de 90 signatários que subscreveram o documento não manifestaram vontade de dialogar com a administração – e que terão perdido o órgão capaz de os representar a partir do momento em que a comissão de trabalhadores da fundação anunciou a sua demissão. “Se o documento foi entregue ao director-geral [Paulo Sarmento e Cunha] e partilhado com o conselho de fundadores, é porque esperávamos uma reacção”, apontou. “A subsistência dos que perderam os seus vencimentos dependia de uma reacção rápida, que não existiu. A administração achou que estas pessoas não mereciam uma resposta”, frisou.
“Houve apenas um membro do conselho de administração que procurou falar connosco. O maestro José Luís Borges Coelho tentou fazer a ponte e agir como interlocutor directo”, salientou, ainda assim, apontando que este representante do Estado na fundação “sempre se mostrou favorável” à elaboração de uma resposta que “tranquilizasse os signatários” e “resolvesse os seus problemas”. Com a autorização de Borges Coelho, Pires de Lima leu mesmo uma mensagem que este administrador dirigiu aos subscritores do abaixo-assinado.
“A falta de diálogo [entre a administração da CdM e os trabalhadores] não é de hoje”, continuou, assinalando que, ao longo dos anos, as “várias reivindicações” feitas pelos precários encontraram “sistematicamente uma parede” no órgão presidido por Pena do Amaral. “A Casa da Música tem mais de sete milhões de euros nos fundos”, acrescentou. “Há soluções para resolver a situação em que a pandemia nos deixou. O problema é falta de vontade e não de dinheiro.”
A seguir, um técnico de palco que optou por não divulgar o nome na audição e que diz trabalhar com a CdM desde 2005 na condição de “colaborador externo” argumentou que nunca teve um “vínculo laboral” com a instituição e que os serviços que presta são frequentemente “combinados por SMS”, “muitas vezes na noite anterior”. “Tenho horários de entrada e saída, respeito hierarquias, trabalho 12, 14, 16 horas por dia e mostro disponibilidade para ficar além da hora. Às vezes, acabamos serviços à 1h e temos de voltar às 7h”, exemplificou. “O tempo de descanso a que temos direito nunca é contemplado e as minhas escalas são mudadas da tarde para a noite. Não saber se tenho trabalho amanhã, não saber qual vai ser o meu vencimento no fim do mês é viver num clima de incerteza que põe em causa a sanidade mental de qualquer um.”
Este técnico, que confessou ter ajudado a escrever o abaixo-assinado de Abril, explicou que o documento terá sido “composto por mais de 100 pessoas”, sendo que, depois de “telefonemas da direcção com ameaças”, quatro técnicos terão desistido dos protestos. O trabalhador sublinhou que foi dispensado a 16 de Março “através de contacto verbal com um coordenador” e que não foi chamado a regressar desde então, o que, garante, não se terá verificado com quem retirou a assinatura do abaixo-assinado e com quem aceitou a proposta da “bolsa de horas” que a CdM terá dirigido aos técnicos e assistentes de sala que ficaram sem eventos na agenda de Março, Abril e Maio. Um “pagamento adiantado” a compensar posteriormente com prestações de serviços nos primeiros meses após a reabertura do equipamento, e que, segundo testemunham os trabalhadores visados, exigia como contrapartida a sua renúncia expressa “ao direito de reclamar em tribunal a qualificação deste contrato [de bolsa de horas] ou de contratos de prestação de serviços anteriores ou futuros como sendo contratos de trabalho”.
Precariedade é “cultivada"
Aos olhos de Hugo Veludo – segundo o qual a equipa que integra, a dos assistentes de sala, não tem “um único colaborador efectivo” –, a precariedade é “cultivada” pelo conselho de administração. Este assistente de sala, que, na segunda-feira, “após insistência”, esteve reunido com Paulo Sarmento e Cunha e Luís Osório, representante da Câmara Municipal do Porto na fundação, criticou a CdM por utilizar essa reunião apenas para mostrar ao público que “abriu uma porta para a comunicação com os seus trabalhadores” quando, na verdade, poucos terão sido os “resultados efectivos” da conversa. “Por ser prestador de serviços, foi-me negado o direito de representar quem não estava na sala”, disse.
Catarina Valadas, música formadora do serviço educativo da CdM, apontou, por outro lado, para diferentes casos de desigualdades, especificando que, perante a falta de respostas a curto prazo por parte da administração, muitos precários tiveram de se candidatar a apoios da Segurança Social. Após ter levantado dúvidas sobre a qualificação como “trabalho artístico” dos serviços prestados por este grupo de trabalhadores, a administração acabou por propor-lhes o pagamento de 50% do cachet, tal como estipulado pelo recente decreto-lei sobre reagendamento de espectáculos; só muito recentemente a percentagem terá subido para os 75% que a administração propôs aos músicos dos agrupamentos residentes.
Respondendo à intervenção do deputado Paulo Rios de Oliveira, do PSD – que, tal como já tinha feito na audição de terça-feira, na presença de Pena do Amaral, voltou a defender que “a Casa da Música foi mais longe do que os outros” equipamentos culturais do país, propondo, com a bolsa de horas, um bote salva-vidas para os prestadores de serviços que “não tinham forma de assegurar sustento” –, Bebiana Cunha, do PAN, salientou que a proposta de um “empréstimo antecipado” não resolve os “problemas estruturais” da CdM, meramente “adiando-os no tempo”. “O Teatro Nacional D. Maria II continuou a remunerar os seus trabalhadores em 100% durante a paralisação”, expôs, por sua vez, Catarina Valadas. “Esse sim é um caso exemplar.”