Não há (boa) vida fora da União — a estratégia europeia para o Brexit
A crise económica gerada pela pandemia da Covid-19 e as alterações que já provocou ao normal funcionamento da economia e sociedade britânica, podem ser o alibi que Boris Johnson necessitava para usar a estratégia da “loucura”
1. Para a União Europeia, provavelmente o melhor exemplo de um “bom aluno” exterior à União é a Noruega. É verdade que, por duas vezes (1972 e 1994), a população em referendo se opôs à adesão à União Europeia (ver NSD, Norway EU related Referendums). Todavia, a elite política e empresarial norueguesa acabou por encontrar uma solução alternativa muito ao agrado da União Europeia. A solução passou pelo Espaço Económico Europeu (EEE), o qual alarga as disposições do mercado interno da União Europeia à Noruega, bem como à Islândia e ao Liechtenstein, ou seja, aos membros da Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA). A Suíça, que também é membro da EFTA, tem um acordo à parte e melhor negociado para o país, pelo menos do ponto de vista da sua autonomia.
Quanto à solução do EEE, não é “o melhor de dois mundos” para quem está fora da União. Implica, entre outras coisas, a adopção da legislação e disposições regulamentares da União Europeia — ou seja um alinhamento com as suas políticas — e o pagamento de uma contribuição financeira para o orçamento europeu (ver Governo da Noruega, 27/03/2017, “Norway’s financial contribution”). Como explicou Espen Barth Eide, político trabalhista norueguês e antigo membro do governo do seu país aos entusiastas britânicos desse modelo, “We Pay, but have no say” — vulgo, “pagamos, mas não temos voto na matéria”. Assim, não há (boa) vida fora da União Europeia.
2. Nas negociações para configurar a futura relação entre ambos, a União Europeia e o Reino Unido estão envolvidos numa espécie “jogo chicken”. Trata-se de um caso clássico de conflito entre dois jogadores no qual nenhum quer ceder nos seus objectivos fundamentais. Há assim uma estratégia de empurrar o conflito para a beira do precipício — brinkmanship — na expectativa de que a outra parte acabe por ceder primeiro (ver “Jogo de nervos: o Reino Unido e as negociações comerciais com a União Europeia” in Público, 13/06/2020).
As recentes declarações públicas dos chefes das equipas negociais da União Europeia (Michel Barnier) e do Reino Unido (David Frost), não deixam grandes dúvidas quanto a isso. Este último (David Frost) afirmou no comité do Parlamento Britânico encarregado do Brexit que a União Europeia precisará de “evoluir na sua posição para chegar a um acordo” com o Reino Unido. Apontou ainda o dedo ao actual mandato negocial dado pela União Europeia a Michel Barnier afirmando que dificilmente produzirá qualquer acordo ‘que possa ser feito connosco’” (Ver BBC, 27/05/2020, “Brexit: David Frost on EU policy position in UK trade talks”).
Quanto a Michel Barnier, devolveu a acusação aos britânicos sobre a responsabilidade pelo impasse dizendo que “Podemos apenas observar que não houve qualquer progresso substancial desde o início dessas negociações e que não podemos continuar assim para sempre”. Acrescentou ainda que a dificuldade de chegar a acordo aumentou “devido à contínua recusa do Reino Unido em estender o período de transição” (ver Comissão Europeia, 5/06/2020, “Statement by Michel Barnier following Round 4 of negotiations for a new partnership between the European Union and the United Kingdom”).
3. Olhando agora para a estratégia negocial da União Europeia verifica-se que consiste em empurrar o Reino Unido, o mais possível, para uma futura relação comercial — na realidade com uma abrangência bastante maior — o mais parecida possível com o já referido modelo do EEE, em especial com o caso da Noruega (o “bom aluno” extra-União, ao contrário da Suíça que acabou por “fintar” a União Europeia nas negociações bilaterais).
As vantagens são significativas para a União Europeia se for assim. Consegue uma aplicação extraterritorial da sua legislação e regulamentação técnica nas áreas do mercado único — e outras afins — praticamente sem “voto na matéria” do país externo (neste caso do Reino Unido). Ao mesmo tempo, dá uma lição potencialmente dissuasora de futuras saídas. Mostra a outros candidatos a essa via que, quem ditará os termos da relação futura, será a União Europeia. O objectivo é também mostrar que o slogan “take back control” (recuperar o controlo) dos que votaram a favor do Brexit deixará de ser uma ilusão animadora para ser, cada vez mais, uma desilusão.
A subordinação do acordo comercial a concessões dos britânicos em matérias ligadas à legislação laboral, ao meio ambiente e aos auxílios estatais, a manutenção do acesso às águas territoriais britânicas — em moldes quase similares da política de pescas da União para os Estados-Membros — e a exigência da competência do Tribunal de Justiça da União Europeia para os litígios emergentes desse acordo (ainda que feita de forma subtil, pela via indirecta da competência exclusiva na interpretação das normas de direito da União aplicáveis, que seriam muitas desde logo nas matérias de “Level Playing Field and and Sustainability”), mostraram uma lógica “punitiva” da ousadia de ganhar autonomia. (ver Conselho da União Europeia, 25/02/2020, “Relações UE-Reino Unido: Conselho dá luz verde para o início das conversações e adota diretrizes de negociação”).
4. É natural, face à grande discrepância de objectivos, que o Governo britânico de Boris Johnson rejeite e abordagem negocial da União Europeia, mesmo sabendo que terá, mais à frente, de fazer concessões (resta saber de que dimensão). A estratégia negocial do Reino Unido é autonomizar-se, o mais possível, da União Europeia, evoluindo, após 2020, para uma relação clássica de “Estado a Estado”.
Na abordagem britânica, a relação futura deverá ser centrada num acordo comercial completado com acordos paralelos noutras áreas mais políticas. “O principal elemento da nossa abordagem é um abrangente Acordo de Livre Comércio, ou ACL, cobrindo substancialmente todo o comércio. Também propusemos um acordo separado sobre pescas que retomará o controlo das nossas águas, como é nosso direito como um Estado costeiro independente; um acordo sobre aplicação da lei e cooperação judicial em questões criminais para ajudar a proteger o público e levar os criminosos à justiça; e acordos em áreas técnicas que abrangem aviação, energia e cooperação nuclear civil, que ajudarão a garantir a continuidade do Reino Unido, no seu novo patamar como nação soberana independente. Estamos à procura do tipo de acordo que a UE já celebrou nos últimos anos com o Canadá e outros países amigos” (ver Governo do Reino Unido, 27/02/2020, “Our approach to the Future Relationship with the EU”).
Por isso, pedir um adiamento do prazo negocial seria admitir agora estar numa posição de fraqueza, algo que Theresa May deixou demasiado evidente quando esteve no poder. Assim, a estratégia britânica é não ceder e empurrar o impasse, o mais possível, para a frente, “obrigando” a União Europeia a ser a primeira a ceder.
5. Há riscos elevados neste “jogo chicken”. A União Europeia tem trunfos significativos, desde logo pela sua dimensão económica e de mercado — onde se concentra cerca de 50% do comércio externo britânico. Isso não permite ao Reino Unido pura e simplesmente abandonar as negociações e ignorá-la. Há cadeias de abastecimento, por exemplo de produtos alimentares, que se sofrerem uma interrupção séria irão criar problemas graves na economia (e política) britânica. Para além disso, há sectores internos britânicos pró-europeus, na política e nos negócios, sempre prontos a fazer eco dos avisos e críticas da União Europeia — são parte desse jogo de nervos — contra a “loucura” de uma saída sem acordo do Governo de Boris Jonhson. Basta ler o jornal The Guardian, o Financial Times ou a revista The Economist e percebe-se bem essa engrenagem. A tudo isto acrescem as delicadas questões nacionais(listas) da Escócia e da Irlanda do Norte.
É a pensar em todas essas fragilidades que Michel Barnier, Ursula von der Leyen e outros na União Europeia estão convencidos que o Governo de Boris Johnson acabará por ceder primeiro, pois é a parte mais fraca. E também querem mostrar-lhe que não há (boa) vida fora da União. Mas seja loucura ou não, Boris Johnson parece ter gosto por fazer bluff e, sobretudo, assumir riscos políticos elevados, de consequências (im)previsíveis. Pode estar predisposto a levar o brinkmanship mesmo à borda do precipício, ou até estar na disposição de aceitar cair nele, esperando ter ganhos políticos internos de outras formas (espicaçando o orgulho nacional britânico, compensando as perdas com o que deixará de pagar à União Europeia, mostrando uma alternativa comercial fora da Europa, etc.).
A crise económica gerada pela pandemia da Covid-19 e as alterações que já provocou ao normal funcionamento da economia e sociedade britânica, podem ser o alibi que Boris Johnson necessitava para usar essa estratégia da “loucura”. Se for levada ao limite, para além das inevitáveis (grandes) perdas britânicas, a União Europeia terá um problema sério nas mãos. Há Estados com importantes ligações ao Reino Unido que não ficarão impassíveis e poderão fracturar a unidade europeia com acções bilaterais. Apesar de tudo, o mais provável — seguramente o mais desejável — é não se chegar a esse ponto e a racionalidade e bom-senso prevalecerem, seja quem for que ceda primeiro.