A pandemia de covid-19 não parou as marchas populares de Lisboa
Como tudo o resto, as comunidades das marchas continuaram a reinventar-se, a adaptar-se. A pandemia de covid-19 não parou as marchas populares de Lisboa.
Quando a Câmara Municipal de Lisboa anunciou publicamente, a 4 de Abril de 2020, que não haveria a edição das Festas Populares deste ano e, consequentemente, do concurso das marchas populares, isso não significou a interrupção das actividades daqueles que fazem parte desses grupos. Como tudo mais, as comunidades das marchas continuaram a reinventar-se, a adaptar-se, na verdade. A pandemia de covid-19 não parou as marchas populares de Lisboa.
Entre os anos de 2014 e 2018, dediquei-me a estudar os processos comunicacionais que as comunidades das marchas utilizaram entre os seus membros internos, entre as marchas e entre os que não pertencem ao seu contexto sociocultural. Como resultado dessa investigação, escrevi uma tese, no doutoramento de Ciências da Comunicação, da Universidade Católica Portuguesa, sob a orientação da Professora Doutora Rita Figueiras.
Como uma das conclusões daquele estudo, observei que as marchas não existem apenas no dia 12 de Junho, o dia de desfile na Avenida da Liberdade, em Lisboa, com transmissão em directo pela televisão para todo o país. Há todo um vasto processo de preparação e de competição no Altice Arena antes desse dia, inclusive com desfiles dentro dos bairros, por exemplo. E mais: há as apresentações noutros concelhos durante o mês de Junho, devido a convites de autarquias espalhadas por todo território português.
Entretanto, pouco se sabe disso. Somente quem acompanha as marchas via redes sociais tem ideia da existência dessas actividades. São os próprios marchantes que fazem o registo e a divulgação de seu quotidiano naquelas plataformas. Uma rotina que não é só de competição, mas que tem por base um laço que pandemia nenhuma vai interromper: a fraternidade, a qual é sempre tornada visível nas redes sociais pelos seus membros como parte de sua identidade colectiva.
Já que a Câmara Municipal de Lisboa não deu alternativa para celebrar as Festas Populares (de Junho) nem que seja na altura do São Martinho (em Novembro), os marchantes sobrevivem com a sua tradição num acto de resistência. Enquanto isso, por exemplo, várias marchas estão a resgatar a sua memória local e a publicar, nas redes sociais, vídeos de apresentações passadas, fotos de momentos que viveram como comunidade. Para a memória da cultura da cidade de Lisboa é uma contribuição que tem sua razão de ser. Tudo o que fazem não é restrito apenas ao grupo da marcha, mas é útil para os que lhes acompanham no digital.
Além disso, se estamos a viver a construção de um mundo no qual é cada vez mais patente o seu rápido processo de digitalização, as marchas revelam que não são apenas uma comunidade geograficamente localizada, mas que são também digitais, em parte. São, dessa forma, redes digitais que não se estendem apenas dentro de Portugal, mas vão para além das fronteiras. Tal como registado na tese doutoral, em 2016, uma página gerida por marchantes no Facebook realizou transmissões do concurso no Altice Arena, as quais contaram com mais de 108 mil visualizações em directo em sete países.
É, portanto, nesse ambiente de uma dupla face (presencial e digital) que a festa popular continua e que a fraternidade entre as famílias que pertencem às marchas permanece, mostrando que para sobreviver em todos os tempos é preciso união.