Desconfinamedo

Uma nova fobia parece emergir como efeito secundário da pandemia da covid-19: a desconfinofobia – o medo das consequências esperadas, hipotéticas ou imaginárias do desconfinamento. Chamemos-lhe desconfinamedo. Os portugueses parecem dele sofrer, pelo menos a julgar pelas opiniões de especialistas e comentadores nos órgãos de comunicação social. O antídoto para esta condição parece simples: pedir à população para não temer. Entendamos que não se trata de encorajar comportamentos temerários ou atos de bravura. Espera-se “apenas” que os portugueses não receiem o vírus, a covid-19, uma segunda vaga, o regresso ao local de trabalho, ver os filhos voltar aos infantários e escolas ou ter os pais em lares, que não temam o lay-off prolongado ou a ameaça de desemprego, ou até mesmo que não tenham medo da ciência, seja lá o que isso for. Convenhamos que já é pedir demais.

Tiago Correia, professor de saúde internacional, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa, abordou recentemente o medo do desconfinamento no Jornal das 8 da TVI, na sua análise da actual pandemia. Segundo referiu este especialista, o medo não é bom, devendo ser substituído por consciência, e uma das razões para essa troca reside na natureza do próprio vírus: sendo excessivamente contagioso, não é excessivamente mortal. Curiosamente, no mesmo Jornal das 8 foi anunciada uma app para telemóveis, a Stay Away COVID, desenvolvida pelo Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC), que consiste num alerta de proximidade a pessoas que testaram positivo para a covid-19. A app afigura-se como um contributo positivo na contenção da pandemia, fomentando a prudência no contacto com pessoas infetadas. Seria inútil, no entanto, se não existisse o receio de contágio.

A mesma relutância em relação ao descofinamedo vem sendo articulada pelo virologista Pedro Simas, que em diversas ocasiões tem incentivado os portugueses a perder o medo do vírus e da doença. Neste contexto, um diagnóstico de covid-19 não corresponde necessariamente a um atestado de óbito, o que parece ser razão suficiente para não temer. Esse facto, entre muitos outros, leva o especialista a apelar a um desconfinamento controlado, para que dessa forma se consiga evitar um novo surto, enquanto se mantém a presença do vírus SARS-CoV-2 na população até ser alcançada a tão ambicionada imunidade de grupo. Bem pode ser a única solução que se vislumbra para um eventual fim da covid-19, mas as suas implicações colocam problemas práticos que não podem ser ignorados, desde logo porque exigem que o contágio seja o estritamente necessário, como se isso fosse um processo simples e de resultados inócuos.

Sabendo que o vírus continua presente entre nós, e assim terá de continuar, não se pode esperar uma atitude estóica de quem sai de casa ao fim de meses confinado, sabendo que à espreita pode estar um inimigo que já mostrou ser furtivo e, aparentemente, também caprichoso: se nuns dias é exclusivamente letal para idosos, noutros parece não escolher idades, numa aleatoriedade que mais parece uma lotaria da morte.

A necessidade da retoma da economia é urgente e inevitável e isso implica que, aos poucos, as multidões voltem a encher os transportes e lugares públicos e que as pessoas se cruzem nos locais de trabalho, quando ainda sofrem de algum stress pós-isolamento. Não é por isso justo exigir dos portugueses um desconfinamento livre de receios, pois são muitas as incógnitas sobre o que nos reserva o “novo normal” e é delas que, em parte, germina o medo. Como em tantas outras situações de alarme social, são as incertezas (uma das mais evidentes características desta pandemia) que fazem com o que medo se torne a única certeza. E é uma reação legítima, inteligente até, e por isso o medo é um direito que não podemos renegar. Devemos, aliás, não ter medo de ter medo. Não é ele, afinal de contas, um dos instintos mais básicos de sobrevivência da nossa espécie?

Enquanto cidadãos de um estado democrático, temos de acreditar que as decisões políticas relacionadas com a pandemia têm na sua base fundamentos científicos. Isso implica, obrigatoriamente, considerar o que a comunidade científica diz, muito embora no atual momento as vozes dos especialistas nem sempre sejam concordantes. E mesmo que se tornem unânimes em relação à estratégia de desconfinamento ideal, há ainda assim uma verdade incontornável que não pode ser ignorada: esta é uma experiência inédita, o que significa que estamos a trilhar caminho novo. Em circunstâncias normais, seria sempre de esperar o habitual nervosismo e hesitação de uma primeira vez, mas estando em causa um vírus altamente contagioso e potencialmente mortal, temos de ser complacentes com quem poderá sofrer de desconfinamedo.

Não se conhece ainda a fórmula do descofinamento perfeito, mas o medo é seguramente um ingrediente necessário, mas nunca podendo ser fomentado ou usado como arma política ou ideológica. Perante os atuais desafios, não basta apelar à responsabilidade e consciência de cada um. E isto porque são já muitos os casos em que o confinamento e o desconfinamento podem não ter corrido bem. No confinamento brando da Suécia, por exemplo, o apelo à consciência das pessoas manteve os cafés cheios, escolas abertas e a habitual azáfama nas ruas, como se o país fosse imune aos males que se abatiam sobre o resto do mundo. No entanto, dados recentes que revelam um considerável impacto económico e um saldo de mais de 4000 óbitos, estão a abalar o otimismo do país despreocupado que pouco alterou as suas rotinas face à pandemia.

Existem ainda casos menos falados nos meios de comunicação social, obsessivamente focada no Brasil e nos Estados Unidos, como o da ilha de Hokkaiko no Japão, que levantou as restrições do confinamento demasiadamente cedo e viu-se perante uma segunda vaga de infeções mais intensa do que a primeira. E temos ainda a Coreia do Sul, apontada como exemplo no combate ao coronavírus, que parece agora a enfrentar um novo surto de covid-19. Casos assim não são maus exemplos que devam ser desconsiderados; são, pelo contrário, bons exemplos de escolhas que talvez não tenham dado certo e cujo insucesso deve ser analisado, para dele se tirar as devidas ilações. Será errado assumir que num e noutro caso poderá ter havido uma confiança exagerada por parte dos cidadãos? Ou uma falsa perceção de segurança? Terá faltado algum medo?

Ninguém sabe ao que vai, na verdade, pelo que também ninguém tem a garantia de que até ficar tudo bem muita coisa não pode ainda correr mal. Também do Japão, onde até já os icónicos bares de karaoke reabriram, chegam sinais de esperança num regresso a uma quase normalidade. Mas a verdade é que o sucesso do seu desconfinamento é ainda um mistério para os especialistas, tendo já sido avançadas dezenas de motivos para o justificar. Por agora, apenas dois aspetos são consensuais no combate ao ressurgimento de uma segunda vaga: a higiene pessoal (lavagem de mãos e etiqueta respiratória) e o distanciamento social, que consiste em evitar conversas de proximidade e locais confinados, pouco arejados ou com muita gente.

Mas tais protocolos são conhecidos por cá. Resta, portanto, fazer caso deles e segui-los com consciência e prudência, mantendo presente algum medo das consequências, para nós e para os outros, caso sejam ignorados. Só assim se conseguirá um regresso consciente à (nova) normalidade. Ou como diz Tiago Correia, uma das vozes mais articuladas e equilibradas nos assuntos da pandemia, só assim se terá um desconfinamento de qualidade.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Investigador no MARETEC - Centro de Ciência e Tecnologia do Ambiente e do Mar, Instituto Superior Técnico

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