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Alguma utopia real ou uma base não lucrativa

E se fosse possível um programa desestigmatizado (de ajuda, de justiça) que pela sua transversalidade, coloca o indivíduo no centro e nos fala de alguma justiça social, algum equilíbrio, alguma igualdade, algum combate à pobreza, algumas soluções para o imediato — para além de uma genial simplificação burocrática. E se fosse possível criar uma base?

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Micheile Hende/Unsplash

Vivemos em tempos mais favoráveis à melancolia do que à utopia. Se a melancolia é especialmente importante para o processo criativo, não é menor o prestígio da utopia para o processo de cura.

Em tempos de peste, como este, o que é que têm em comum alguns artistas, alguns empregados de limpeza, alguns artesãos, arquitectos e designers independentes, alguns pequenos comerciantes não essenciais, alguns assistentes de sala, alguns pequenos empresários, todos os poetas, alguns… a lista é virtualmente infinita — um ser humano, um trabalho — fruto de um intrincado sistema socioeconómico (aparentemente ou directamente) não lucrativo, logo acessório e invisível? O que é que têm em comum? O que é que temos em comum?

A resposta mais imediata declara que, em tempos de peste (como noutros) alguns destes, por segmento, têm sentido a urgência visceral de sair para a rua pedir — e o nome custa — ajuda. Como o conceito custa, com as suas cargas históricas, outros não pedem, mas exigem, não ajuda, mas justiça. Por segmento, clamam por medidas messiânicas de protecção e assistência para o momento presente, para todos os momentos. Mas, e se?

A luta individual e tantas vezes egoísta, ao activar-se por segmento, ainda que possa resolver na particularidade, destapa ainda mais o problema da generalidade. Mas, e se? E se fosse possível um programa desestigmatizado (de ajuda, de justiça) que pela sua transversalidade, coloca o indivíduo no centro e nos fala de alguma justiça social, algum equilíbrio, alguma igualdade, algum combate à pobreza, algumas soluções para o imediato — para além de uma genial simplificação burocrática. E se fosse possível criar uma base? Uma base de para a sobrevivência e para a dignidade?

Quando o Rendimento Básico Incondicional (de emergência, universal ou parcial) conseguir autonomizar-se dos círculos intelectuais e académicos e descer às ruas para junto dos que se manifestam, talvez aí se consiga começar qualquer coisa tão importante para alguns daqueles que se apresentavam no início deste ensaio (isto, se não quisermos dizer, para todos).

Segundo Adorno, não cabe ao aspirante a ensaísta a explanação do caso — sobre o Rendimento Básico, desde artigos científicos a curtos vídeos animados em plataformas digitais, há tanto por onde nos deliciarmos com todas as suas dúvidas e incongruências. Cabe-nos, apenas, escolher a parte, escolher o alerta para uma força simplificadora de todo o processo para tempos de peste. Cabe-nos apenas o manifesto-simples de deixar a pergunta. E se? E se todas as preces forem possíveis de condensar numa só resposta, numa base mais digna? Cabe-nos repetir exaustivamente, que há uma alter-solução, cheia de impasses e pontas-secas, mas com a despretensiosa proposta de ser mais simples e mais justa.

Mas a grande vantagem do Rendimento Básico para o início de discussão, é sua capacidade de apropriação (com importantes variações) desde a esquerda anti-capitalista, passando pela moderação verde da democracia-participativa, até à direita liberal da fé nos mercados. Os lados e os centros podem gladiar-se por fim à procura de valores mínimos e das formas de financiamento, de taxações aos ricos, aos muito ricos, às multinacionais tecnológicas e aos homens que querem ir (e aos que já vão) ao espaço.

Para nós, os alguns do início desta tentativa de ensaio sublinhado de manifesto, esta base é tudo o que devemos querer (e crer) para podermos viver e não sobreviver, criar livremente, escrever, desenhar (ou apenas pensar), não aceitar empregos precários e humilhantes, por fim, em resumo do in-resumível, cumprirmo-nos. 

A próxima vez que alguns de nós formos para a rua, troquemos o cartaz. Escrevamos utopia; escrevamos base; escrevamos utopia-real; mostremos os vídeos curtos e animados e os artigos científicos; informemos os outros de que há qualquer coisa de possível e revolucionário, mas que simultaneamente (para quem não quiser começar já a construir o pós-capitalismo) pode ser apenas uma base.

Trabalho há seis anos com alguns dos alguns do início deste panfleto e sou simultaneamente um deles. Para mim, deixo uma pergunta: Aonde é que estamos a falhar, quando a mensagem não está a chegar aos que mais “lucravam” de um programa que tanto precisa do lucro, como o repele?

E se, por fim, a última dúvida for simplesmente: e de onde vem o dinheiro? Podemos sempre descansar nos pensamentos centenários do costume, John Maynard Keynes. Mas, desta vez, as circunstâncias não mudaram.

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