Pandemia e potência (ou a ameaça da telescola)
Até que ponto poderemos continuar a falar de escola – ou de uma “vida escolar” – à margem de tudo aquilo que veio suspender o quotidiano das nossas vidas? Seremos verdadeiramente capazes de pensar “a escola”, e uma ideia de “aprender”, sem interrompermos a lógica por detrás deste seu (re)começo?
Neste texto articulam-se algumas preocupações em torno do significado que a vida escolar adquiriu em consequência do confinamento social provocado pela pandemia de covid-19. Referimo-nos, certamente, à telescola, a esse dispositivo cuja realidade, trazendo à memória a experiência de um tempo passado, ressurgiu agora no contexto das diferentes medidas impostas pelo Governo, de modo a garantir que a vida de milhares de alunos, pais e professores não fosse interrompida pela pandemia.
Há, no entanto, uma questão que desde logo se impõe: até que ponto poderemos continuar a falar de escola – ou de uma “vida escolar” – à margem de tudo aquilo que veio suspender o quotidiano das nossas vidas? Seremos verdadeiramente capazes de pensar “a escola”, e uma ideia de “aprender”, sem interrompermos a lógica por detrás deste seu (re)começo? Posicionemo-nos, portanto, na interrupção, pondo em evidência a descontinuidade dos contextos de vida com os quais actualmente lidamos, e intencionalmente assinalando, tal como numa brisure, para relembrarmos Jacques Derrida, alguns pontos de partida inerentes ao início desta telescola, em particular o espaço ocupado pela designada educação artística.
Um dos problemas observados prende-se com a instrumentalização dos professores, das suas acções e das pedagogias artísticas veiculadas pelo #estudo em casa. Não nos compete apontar o dedo à performance dos professores do ponto de vista das suas capacidades televisivas; antes, o que nos interessa salientar é a subordinação da acção dos professores a uma lógica de consumo informativo (“dar a matéria”), mas cuja fronteira com o entretenimento pedagógico é facilmente ultrapassada dada a adopção de estratégias e recursos comunicativos que ali se apresentam já prontos a usar (produtos da Leya, vídeos da Areal, etc.). É certo que estes mesmos recursos didácticos estão presentes nas salas de aula “normais”. E é certo também que na maioria dos casos o trabalho dos professores é capturado pelo voo pairante das editoras sobre as escolas. Mas não deixa de ser inquietante, nas duas semanas em que assistimos às aulas de “educação artística” da telescola, percebermos que tais recursos e estratégias de comunicação ali se instalam de uma forma capital, puramente automática e passiva.
A acompanhar os seus usos, e como uma omnipresença, observámos o desapossamento com que professores relatam conteúdos sobre “cor” a partir de uma psicologia etnocêntrica, segundo a qual o preto e o branco são sempre associados a sentimentos negativos e positivos. Se a circulação deste tipo de associações parece indiferente desde que se encontre ao abrigo de uma aula, na qual as emoções e as sensações são tidas como sinónimos de sentimentos, não será então preocupante que, na base desse discurso, ainda se reproduza grande parte das representações sociais e de género usadas para falarmos sobre o cor-de-rosa ou o azul. Nesta aula de educação artística “do 1.º ao 9.º anos” vimos de que forma a indolência ou a benignidade de um discurso se produzem em simultâneo com a tentação do expressivo, mas aqui num quadro naturalizado de conceitos e saberes tidos como consensuais. O ressurgimento desta telescola veio deste modo coincidir com mais e mais escola, uma ideia de aprender cuja forma (escolar) é permanentemente reforçada pelas doutrinas da eficácia e do rendimento.
Sempre útil, o tempo dedicado ao estudar não admite uma ideia de pensar concebida como o espaço da paradoxa, usando o termo de Deleuze, isto é, um espaço para que a potência do pensamento – que é a razão do aprender – possa nascer no próprio acto de pensar. Para tal, seria necessário interromper e descontinuar a lógica da própria escola, criando uma possibilidade para que esta telescola surgisse de um movimento de produção, não de mera adequação.
A imagem de uma sala de aula que ali, na televisão, em tudo se assemelha à realidade mais ou menos conhecida por nós, constitui, na verdade, essa busca pela forma mítica do consenso, da verdade, segundo a qual o conhecimento é pensado do ponto de vista da lei (luz) natural. A forma escolar persegue esta busca desde as suas origens, e a acção dos professores, dentro ou fora da telescola, parece permanecer, para todos os efeitos, sujeita a esta imagem instrumental e dogmática do que significa aprender. Numa aula de educação artística repetem-se os conceitos de ponto, linha e textura, cujos exemplos são posteriormente associados à produção artística e à referência a artistas “com obra”. Minutos antes, nessa mesma aula, mas agora sobre música, recorre-se à “audição activa” e a um “musicograma” cujo suporte – um programa da Leya sobre tempo e improvisação – define as regras pelas quais esse tempo pode e deve ocorrer. Enfim, o aparato tecnológico e linguístico que é posto aqui em acção anula qualquer potência para o pensar, porque a sua ordem é dirigida por um método cuja aplicação é dada como preexistente.
Neste universo, e uma vez derrotados pela máquina virtual, os professores transformaram-se naquele tipo de profissionais que querem “dar tudo por tudo” e que se “esforçam ao máximo para que corra tudo bem”. Com amor e paixão, as aulas da telescola oferecem-se quase como generosidade, uma promessa de que os professores continuam aqui – eles sempre ali estiveram – prontos para uma luta que parece ter vindo ameaçar a existência da escola em si. Fosse porém este sintoma de ameaça uma possibilidade para justamente repensarmos o Texto que domina a escola, recriando a sua textura institucional hegemónica, mas sob o ponto de vista político em que aquela luta veio colocar-nos, isto é, assumindo o conflito, e não apenas a ideia de esperança, enquanto processo indispensável a um outro sentido de educação artística cuja necessidade importaria agora, neste contexto pandémico, urgentemente reconhecer.
O tempo desta telescola poderia, com efeito, fazer levantar do chão o problema do modelo escolar e deslocá-lo para a produção de uma controvérsia cuja lógica permitisse interrogar as suas próprias formas de legitimação. Pensar e aprender não são condições inatas, seja em que área do conhecimento for, e, portanto, o problema não está apenas na forma metodicamente justificada com a qual as aulas e os exercícios de educação artística surgem ali encadeados. O problema que enfrentamos possui uma amplitude além da percepção estrita desta medida de remediação social que é a telescola.
Investir, de um modo problemático, na interpretação do tempo que vivemos significa admitir, no contexto político, o esgotamento dos modelos económicos, sociais e educativos que conhecemos até então – a falência, como por estes dias se diz, dos nossos próprios estilos de vida. Mas até que ponto seremos capazes de repensar a hegemonia de tais modelos? Por que processos conseguiremos desaprender mitologias que damos como seguras, naturais, certas? A pandemia deveria corresponder ao espaço para, radicalmente, pensarmos um outro mundo. De facto, nunca tanto se falou sobre “pedagogia” no contexto das medidas definidas pelo Governo, desde as forças escolares às de segurança e sanitárias. Será esta a possibilidade para a produção de uma outra pedagogia sobre o sentido do nosso lugar na paisagem, nas cidades, nas nossas casas, nos nossos trabalhos? Mas é contra uma ideia de senso comum à qual, por dever moral, aprendemos a regressar, que esta possibilidade se abre.