Mineápolis quer “desmantelar” a polícia e criar novo modelo de segurança

É apenas um compromisso, mas resume anos de apelos a uma revolução na forma de se fazer policiamento nas cidades norte-americanas. Objectivo principal é tirar dinheiro das polícias para investir em programas sociais.

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Polícias juntam-se a protesto anti-racismo em Pasadena, no Texas Reuters/CALLAGHAN O'HARE

O conselho legislativo da cidade norte-americana de Mineápolis comprometeu-se, no domingo, a desmantelar a polícia local e a substituí-la por “um novo modelo de segurança pública”. Mais do que uma simples reforma, o objectivo é deslocar fundos do orçamento da polícia para programas sociais e pôr especialistas em saúde mental e em toxicodependência a intervirem na primeira linha.

O compromisso foi assumido por nove dos 13 membros do Conselho Municipal de Mineápolis, um órgão legislativo que é responsável pela aprovação e gestão do orçamento da polícia. E surgiu horas depois de o presidente da câmara, Jacob Frey, ter saído de uma manifestação anti-racismo debaixo de vaias por ter dito que é contra o desmantelamento da polícia.

“Em Mineápolis e em cidades por todo o país, é evidente que o nosso sistema de policiamento não está a manter as nossas comunidades em segurança”, disse a presidente do conselho legislativo, Lisa Bender, durante uma sessão de esclarecimento num parque da cidade, no domingo.

“Os nossos esforços para a aprovação de reformas incrementais falharam, ponto final. O nosso compromisso é fazer o que for necessário para manter em segurança cada membro da nossa comunidade e dizer a verdade: a polícia de Mineápolis não está a fazer isso. O nosso compromisso é pôr fim ao policiamento tal como o conhecemos e recriar sistemas de segurança pública que nos mantenham efectivamente em segurança.”

Numa mensagem publicada no Twitter, uma das representantes do conselho legislativo, Alondra Cano, disse que o órgão chegou à conclusão de que a polícia de Mineápolis “é irreformável” e que é altura de “pôr fim ao actual sistema de policiamento”.​

Sem calendário

Não foi marcada uma data específica para as mudanças anunciadas, nem foram ainda avançadas propostas concretas. E é possível que a promessa venha a esbarrar na oposição do mayor  que a considera controversa e ambiciosa de mais –, e também do poderoso sindicato da polícia de Mineápolis  que tem resistido a quaisquer reformas no seu funcionamento.

O compromisso anunciado no domingo foi aprovado por nove dos 13 membros eleitos do conselho legislativo, o que significa que Jacob Frey não poderá vetá-lo. Mas não se sabe ainda de que forma esse compromisso vai traduzir-se em acções concretas, nem se todas as propostas vão ter apoio suficiente entre a população.

O simples facto de que o mayor e 12 dos 13 membros do conselho legislativo são do mesmo partido (um filiado do Partido Democrata norte-americano que só existe no estado do Minnesota) e não estão de acordo, indica que o processo vai ser moroso e controverso.

Cortar financiamento

Mineápolis não é a primeira cidade norte-americana a querer revolucionar a sua forma de policiamento, e há nos Estados Unidos um movimento que defende cortes profundos no financiamento das forças policiais.

O objectivo, segundo os defensores da medida, é tirar à polícia a capacidade para comprar material de guerra ao Exército e investir esse dinheiro em programas de proximidade social e abordagens não-violentas, para se reduzir a necessidade da intervenção policial no futuro.

Cada vez mais, as forças policiais nos Estados Unidos patrulham as ruas e enfrentam protestos e desacatos com material de guerra, incluindo blindados anti-minas e lança-granadas, comprados ao abrigo do programa 1033 – cujo lema é “Do combate na guerra ao combate ao crime”.

Por lei, o Departamento de Defesa norte-americano é obrigado a disponibilizar à polícia uma lista de material e equipamento de guerra excedentário. Em quase 20 anos, entre 1997 e 2014, o programa cedeu a milhares de polícias nos Estados Unidos material e equipamento militar avaliado em mais de cinco mil milhões de dólares, e originou acusações de desperdício e fraude.

Em 2015, na sequência da morte do afro-americano Michael Brown, baleado por um polícia em Ferguson, no estado do Minnesota, o então Presidente Barack Obama impôs limites ao tipo de material que podia ser transferido do Exército para a polícia. Mas a decisão foi tomada por decreto presidencial, por não haver consenso no Congresso, e seria revertida pelo Presidente Trump em 2017.

“O que estamos a dizer é que queremos que a nossa comunidade cresça, e queremos investir em coisas de que realmente precisamos”, disse Kandace Montgomery, directora do grupo Black Visions Collective, na sessão de esclarecimento em Mineápolis, no domingo. “Estamos mais seguros sem patrulhas armadas e imunes à responsabilização, e apoiadas pelo estado na sua tarefa de caçar pessoas negras.”

Os cortes no financiamento da polícia norte-americana, e a defesa de uma revolução na forma como as cidades gerem a segurança pública – por oposição a reformas incrementais –, são medidas cada vez mais discutidas no país. 

Em Austin, no estado do Texas, as equipas que respondem às chamadas telefónicas de emergência perguntam se a situação exige a presença da polícia, dos bombeiros ou de pessoal treinado para lidar com problemas de saúde mental, por exemplo. Em muitos casos, em todo o país, a polícia é chamada para travar uma ameaça que acaba com a morte do suspeito e que poderia ter sido abordada de uma forma não-violenta.

Na cidade de Eugene, no estado do Oregon, qualquer chamada de emergência acciona uma equipa que inclui pessoal médico e um técnico com formação em gestão de crises e saúde mental. Se o diálogo não funcionar, a presença de socorristas pode salvar a vida de um suspeito ferido.

Exemplo de Camden

Em 2013, a câmara e o conselho legislativo de Camden, no estado de Nova Jérsia, dissolveram a polícia local na sequência de um máximo histórico de homicídios na cidade de 74 mil habitantes. Nesse ano foram registados 67 homicídios, numa cidade que surgira sempre no topo das mais violentas do país desde o início da década de 1990.

Apesar de a reforma em Camden não ter sido tão profunda como a que defende o conselho legislativo de Mineápolis, os resultados são visíveis: em 2019 foram registados 25 homicídos

Para além da adopção de medidas comuns como o uso de câmaras, os agentes da polícia de Camden são treinados para acalmar situações perigosas e são uma presença constante nos bairros da cidade, onde conversam e passam tempo com os moradores, em particular os mais jovens.

Na semana passada, o chefe da polícia local, Joseph Wysocki, marchou ao lado da comunidade afro-americana da cidade em protesto contra o homicídio de George Floyd em Mineápolis, ajudando a segurar uma faixa.

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