A nossa casa está a arder
É indispensável repensar-se com urgência o papel da gestão cultural, hoje perigosamente inclinada para a dimensão utilitária, focando-se quase exclusivamente na gestão operacional.
Não, não é só a Casa da Música, ou Serralves, ou. De escândalo em escândalo, vamos percebendo que a forma como algumas organizações culturais são dirigidas está muito longe de cumprir os padrões éticos que associamos a uma missão de serviço público. É difícil falar acerca disto, na medida em que se revelam as contradições entre um discurso público politicamente comprometido, ‘progressista’, e práticas internas de trabalho que não oferecem resistência aos abusos do capitalismo. É constrangedor dar conta da fissura entre o dinamismo das programações ‘temáticas’, que ensaiam respostas às inquietações sociais do momento e o conservadorismo dos modelos de gestão em que assentam. É difícil falar acerca disto, porque a retórica à volta das instituições culturais é tantas vezes essencialista, repetindo até à náusea os chavões da participação ou do humanismo sem, verdadeiramente, os escrutinar.
Fraco consolo seria se as notícias recentes acerca da situação dos trabalhadores precários da Casa da Música servissem finalmente para entendermos que não há nada de ‘intrinsecamente’ democrático na gestão da cultura. Uma gestão ou é democrática ou não é, ou é competente, ou não é. O contexto sectorial não lhe confere imunidade ética.
É por isso indispensável repensar-se com urgência o papel da gestão cultural, hoje perigosamente inclinada para a dimensão utilitária, focando-se quase exclusivamente na gestão operacional. Construída a partir dos modelos vigentes nas práticas de gestão do mundo empresarial, contagiada pela agenda das indústrias criativas e pelo deslumbramento político com o empreendedorismo, e fortemente condicionada pelo aumento exponencial do escrutínio público e da exigência de prestação de contas, a gestão cultural começou por afirmar-se sobretudo no campo técnico: compreendia o domínio de ferramentas de marketing, um conhecimento da legislação aplicável ao sector, exigia familiaridade com os princípios básicos da gestão de recursos humanos e da gestão financeira.
A urgência de estabelecer profissionalmente esta área emergente pode ter justificado uma perspectiva excessivamente orientada para os resultados, na ânsia de provar o seu valor na esfera artística, mas chegou o momento de corrigir este desequilíbrio. Por um lado, corrigindo as estratégias de recrutamento para funções de liderança, o que supõe inverter a tendência de sobrevalorização das competências administrativas e de gestão financeira, traduzida na escolha de profissionais que construíram a sua carreira na banca ou na advocacia. Não se trata de desmerecer os contributos dessas áreas, mas de não confundir a armadura tecnocrática com a liderança. Por outro lado, é importante lembrar que isto se passa a despeito dos esforços recentes de qualificação dos profissionais especializados da área artística e cultural: gestoras/es culturais, desde logo, mas também mediadoras/es, produtoras/es, artistas, educadoras/es, que não só acumulam décadas de direcção de projectos, como, em muitos casos, completaram formações especializadas (na academia e fora dela) que as/os habilitam, justamente, a liderar organizações culturais. (Faltaria referir a necessidade premente de actualização dos currículos dos cursos de produção e gestão cultural, mas isso será outra conversa.)
De cada vez que as administrações da Casa da Música ou de Serralves repetem a alegada ‘legalidade’ da sua actuação, tornam claro o seu desajuste para o cargo que ocupam e revelam a forma restrita como interpretam a sua missão de serviço público bem como, na verdade, o facto de não terem um percurso na gestão cultural ou na gestão de projectos culturais. Protagonizam antes uma estranha espécie de administração que se põe de fora da coisa administrada (as actividades artísticas e culturais): definem-se por geri-la e não por compreendê-la. Ora se os processos de criação artística e de produção não são neutros, não podem ser reduzidos à sua dimensão técnica; têm de estar inscritos num padrão ético e de solidariedade. Não é possível dizer hoje que a gestão não faz escolhas políticas ou sociais.
A convulsão actual é tanta, que este pode não parecer um incêndio importante. Quando somos diariamente sacudidos por histórias de violência e desigualdade, a escala destas pequenas desgraças caseiras pode ser difícil de conciliar com a exigência de justiça global. Mas não sendo (felizmente) equivalentes, os distúrbios no nosso quintal deviam incomodar-nos tanto quanto os que ocorrem longe de nós. Devíamos aplicar uma espécie de princípio da subsidiariedade à nossa exaltação justiceira, até porque a nossa reacção a estes desmandos pode influenciar o calibre das lideranças que nos caberão no período pós-pandemia.