Desafios de um vírus viajante
O essencial é que a saída da pandemia seja um caminho rico de oportunidades e não uma porta aberta às desigualdades do costume. Não faltarão grandes resistências contra este caminho novo, mas este é o momento de o exigir.
O novo coronavírus viaja, por isso é fundamental saber com rapidez e precisão por onde ele anda. É uma das razões pelas quais os recentes surtos na região de Lisboa não podem ser debelados apenas com mais testagem. O teste é uma fotografia, válida no momento, mas não conta uma história e nada nos diz sobre o futuro. É útil, mas não chega.
Soube que está a ser desenvolvido em Porto Alegre, com tecnologias de comunicação e inteligência artificial, um modelo em quatro dimensões que mostra em tempo real a evolução da pandemia. O modelo é de adesão voluntária. Desconheço ferramentas destas em Portugal, mas sei que o seu uso tem sido imposto em países asiáticos. Creio, no entanto, que a alternativa, hoje, não é só entre regimes autoritários e regimes democráticos. É entre conhecimento com respeito pela cidadania, que não existe na China, e obscurantismo com regressão civilizacional, que está a explodir dramaticamente nos EUA e no Brasil.
Por enquanto, sabem-me a pouco as medidas postas em prática na grande Lisboa para fazer frente aos novos surtos. Não se iludam. O problema não é só do comportamento de (alguns) jovens. O problema é que o choque do coronavírus não é simétrico. Em Lisboa, nas primeiras semanas da crise, o contágio afectou sobretudo freguesias com uma população afluente que viajou nas férias de Carnaval. Com o estado de emergência e uma inteligente actuação da saúde pública, foi possível “achatar” a curva. Mais contraditória e difícil de gerir tem sido a retoma da actividade económica, social e cultural. Os casos começaram a subir em áreas com população mais pobre.
Economia e saúde pública não são antinómicas, mas só teremos uma retoma económica saudável se forem combatidas desigualdades estruturais: no acesso ao emprego com salário justo, nas condições habitacionais, na educação, no apoio aos mais novos e aos mais velhos, no combate às discriminações, no desenvolvimento científico, cultural e artístico, na protecção ambiental.
O plano de estabilização anunciado pelo Governo não pode ser apenas económico, tem de ter uma componente social forte. E não basta ouvir os parceiros sociais. Há largos sectores da sociedade portuguesa que não estão representados na chamada concertação social. Há medidas de fundo na área da habitação e da cultura que urgem.
Identificámos problemas graves nos lares de idosos e no aumento do desemprego. Não é altura de criarmos um forte sector empregador na área dos cuidados, valorizando qualificações, salários e instalações de apoio? Ou vamos continuar a forma como lidamos com a velhice, um feito demográfico extraordinário que afinal tratamos como se fosse um fardo social? Também sabemos que o “distanciamento social” é para manter (menos nos aviões, por escandalosa cedência europeia às companhias de aviação), mas como garanti-lo nos transportes públicos sem horários desfasados? Andamos a fechar cafés nos bairros pobres e culpamos os jovens, mas por que não demos já a máxima prioridade à retoma de actividades desportivas e criativas, tão importantes para essa faixa etária?
Podia continuar a exemplificar, mas o essencial é que a saída da pandemia seja um caminho rico de oportunidades e não uma porta aberta às desigualdades do costume. Não faltarão grandes resistências contra este caminho novo, mas este é o momento de o exigir.