Tal como o autor, a maioria das pessoas que lêem este livro não são cientistas ao nível de Jonas Salk nem celebridades como Elvis. Vivemos as nossas vidas sem fazermos pequenas ondulações, muito menos ondas. E quando se trata da crise planetária, a maioria de nós sente-se perdido entre as causas e os efeitos, confuso com as estatísticas em mutação constante e frustrado pela retórica. Sentimo-nos impotentes mas, inexplicavelmente, calmos. Como se espera que nós, cidadãos comuns, façamos algo a respeito de uma crise acerca da qual estamos informados mas em que não acreditamos, que compreendemos de um modo confuso (na melhor das hipóteses) e que não temos maneiras óbvias de combater?
Assistir ao documentário Uma Verdade Inconveniente, de Al Gore, para mim foi uma revelação. Quando o ecrã ficou negro depois da última imagem, a nossa situação parecia perfeitamente clara, bem como a minha responsabilidade para participar nesse combate. Assim como as dezenas de milhar de norte-americanos que se dirigiram de imediato aos gabinetes de mobilização da sua área quando ouviram as notícias de Pearl Harbor, senti-me impaciente para me alistar.
E quando passaram os créditos do filme, no momento de maior entusiasmo para fazer o que fosse necessário para contrariar o apocalipse iminente que Gore acabava de nos traçar, surgiram no ecrã propostas de acção. “Está pronto para mudar a maneira como vive? A crise climática pode ser resolvida. Eis como começar.”
- Diga aos seus pais para não arruinarem o mundo onde vai viver.
- Se é pai ou mãe, junte-se aos seus filhos para salvar o mundo onde eles viverão.
- Mude para fontes renováveis de energia.
- Contacte a sua companhia de electricidade para saber se fornece energia verde. Se não o faz, pergunte porquê.
- Vote em líderes que se comprometam a resolver esta crise.
- Escreva ao Congresso. Se não o ouvirem, candidate-se ao Congresso.
- Plante árvores, muitas árvores.
- Faça uso da palavra na sua comunidade. Telefone para as estações de rádio e escreva para os jornais.
- Insista para que os Estados Unidos não aumentem as emissões de CO2.
- Adira aos esforços internacionais para travar o aquecimento global.
- Reduza a nossa dependência de petróleo externo; ajude os agricultores a produzirem biocombus- tÍveis.
- Eleve os padrões de economia de combustível; exija emissões baixas dos automóveis.
- Se acredita na oração, reze para que as pessoas encontrem força para a mudança.
- Nas palavras do antigo provérbio africano, enquanto reza, vá fazendo.
- Exorte todas as pessoas que conhece a verem este filme.
Considero esta lista de uma indefinição frustrante (Telefonar para as estações de rádio e dizer exactamente o quê, e com que fim?), improdutiva (Posso dizer aos meus pais para não arruinarem o mundo onde vou viver, e eles podem dizer o mesmo aos seus pais, mas em determinado momento alguém não terá de fazer, de facto, algo?), claramente irrealista ("Boa tarde, Senhor Presidente, sou eu. Desculpe fazê-lo esperar — estava só a ajudar alguns agricultores a produzirem biocombustíveis — mas, agora que está a ouvir-me, insisto para que a América não aumente as emissões de CO2"), e tautológica de uma maneira que seria cómica se não estivesse prestes a chorar (Veja este filme para poder exortar outros a verem este filme para que eles possam exortar outros a verem este filme).
É bom fazer uso da palavra, é bom reciclar e plantar árvores, muitas árvores. Essas actividades são boas, da mesma maneira que esquadrinhar os céus em busca de aviões inimigos que nunca lá estarão: para nos recordar que está a ser travada uma guerra, para gerar solidariedade e força de vontade. Segundo uma análise de 2017, reciclar e plantar árvores conta-se entre as escolhas pessoais mais vezes recomendadas para combater as alterações climáticas, mas não têm “grande impacto” — são emoções, mais do que acções. Outras acções que são consideradas importantes mas não têm grande impacto: instalar painéis solares, conservar energia, comer produtos locais, compostar, lavar a roupa com água fria e secá-la no estendal, ser sensível à quantidade e tipos de embalagem, comprar alimentos orgânicos, substituir um carro convencional por um híbrido. As pessoas que fazem estes esforços — e somente estes esforços — estão a dizer a palavra “punho” a um objecto que querem esmurrar. Aviões a patrulharem os céus do Midwest sem tropas no terreno na Europa teria sido suicida.
Há uma ausência flagrante na lista de Gore, e a sua invisibilidade repete-se no filme de 2017, Uma Sequela Inconveniente: A Verdade ao Poder, com uma excepção ínfima. É impossível explicar esta omissão como sendo acidental sem acusar também Gore de uma espécie de ignorância radical ou negligência. Em termos da escala do erro, seria equivalente a um médico receitar exercício físico a um paciente que estivesse a convalescer de um ataque cardíaco sem lhe dizer também que tinha de deixar de fumar, reduzir o stress e parar de comer hambúrgueres e batatas fritas duas vezes por dia.
Porque terá, então, Gore optado por deixar esse aspecto omisso? Quase certamente por receio de que seria controverso de uma forma que desviaria a atenção e atenuaria o entusiasmo que ele tanto se esforçara por inflamar. É algo que também tem estado, em grande medida, ausente dos sites das principais organizações de defesa do ambiente — embora isto pareça começar a mudar. Também não é mencionado no famoso livro Dire Predictions (Prognósticos Terríveis), escrito pelos climatologistas Michael E. Mann e Lee R. Kump para instruírem os cidadãos sobre o quinto relatório de avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, publicado em 2014. Depois de preverem desastres climáticos que ameaçam a nossa existência, os autores recomendam que troquemos as máquinas eléctricas de secar por estendais e nos desloquemos de bicicleta. Entre as suas propostas não há qualquer referência à acção diária que constitui, segundo o director de pesquisa do Projecto Drawdown — um grupo de quase duzentos cientistas do ambiente e líderes de opinião dedicados a identificar e formular soluções concretas para fazer frente às alterações climáticas —, “o contributo mais importante que cada indivíduo pode dar para inverter o aquecimento global”.
Nos Estados Unidos, desde o início que os ambientalistas travam uma batalha difícil, enfrentando o desafio de instruírem os cidadãos a respeito de algo abstracto e difícil de acreditar, bem como a enorme resistência da indústria dos combustíveis fósseis e, após um breve período de cooperação bipartidária, da maioria de um partido político. Se eles passaram décadas a tentar persuadir o público de que extrair carbono da terra e queimá-lo resulta em alterações climáticas, e todavia as pessoas elegem um presidente que se referiu ao aquecimento global como um boato chinês, como podem ter a expectativa de promoverem um debate que desafia os aspectos fundamentais das nossas identidades pessoais, familiares e culturais? Algumas organizações e figuras públicas receiam perder o impulso e o apoio que alcançaram tão arduamente. Outras receiam serem acusadas de hipocrisia. E há ainda quem receie que desviar a atenção dos combustíveis fósseis arruine décadas de esforços para combater o superpoder global dos gigantes do petróleo.
A política e a psicologia do activismo são relevantes. Cada argumento é, no essencial, uma história, e determinadas histórias (Rosa Parks) resultam melhor do que outras (Claudette Colvin). Por vezes, é melhor esconder uma realidade desafiante em prol de se conseguir finalmente reconduzir as pessoas para ela. Porém, quão verdadeira é uma verdade inconveniente que omite um dos maiores contributos para a nossa crise planetária e que também é o mais fácil de corrigir? E se triunfar na guerra mais importante que alguma vez travaremos — a luta pelo nosso modo de vida e pela própria vida — depender de uma acção colectiva que, em relação à escala da nossa guerra, é proporcional a apagar as luzes à noite? Não devíamos, pelo menos, falar nisso? Até mesmo para os crentes, não estará o pedido de que as pessoas encontrem força para mudarem incompleto enquanto não revelarmos as mudanças em questão?
As nossas maneiras de lidarmos com a crise planetária não estão a resultar. Al Gore merece o seu Prémio Nobel, mas a mudança que inspirou não está sequer próxima de suficiente — um facto que ele reconhece prontamente em Uma Sequela Inconveniente. As instituições do ambientalismo merecem o nosso apoio, mas as suas realizações também estão longe de serem suficientes. Qualquer pessoa que domine a ciência e esteja disposta a reconhecer a verdade mais inconveniente de todas, concordará que estamos a fazer muito pouco, muito devagar, e que o nosso rumo actual conduz à nossa destruição.
Segundo uma estimativa, o uso de electricidade é responsável por 25% das emissões anuais de gases com efeito de estufa. A agricultura corresponde a 24%, principalmente devido ao sector pecuário. A actividade fabril também é responsável por 24%. Transporte: 14%. Edifícios: 6%. Origens diversas dão conta do restante. Todas estas emissões têm de descer para zero, o que exigirá inovação e cooperação, uma proeza que será impossível se não começarmos a falar de todos os sectores que contribuem.
O objectivo do Acordo de Paris de manter o aquecimento global abaixo de 2 °C (3,6 Fahrenheit), uma meta considerada ambiciosa, está para lá do limite do cataclismo. Mesmo que consigamos, miraculosamente, atingi-la — modelos estatísticos recentes apontam para uma probabilidade de 5% de isso acontecer —, estaremos a viver num mundo muito menos hospitaleiro do que aquele que conhecemos e muitas das mudanças em curso seriam na, melhor das hipóteses, irreversíveis ou, na pior, auto-amplificadas. Se desafiarmos todas as probabilidades que estão contra nós e limitarmos o aquecimento global a 2 °C:
- O nível do mar subirá meio metro, inundando zonas costeiras em todo o mundo. Daca (dezoito milhões de habitantes), Carachi (quinze milhões), Nova Iorque (oito milhões e meio) e dezenas de outras metrópoles ficarão inabitáveis; prevê-se que cento e quarenta e três milhões de pessoas se tornem migrantes climáticos.
- Os conflitos armados aumentarão em cerca de 40% devido às mudanças climáticas.
- A Gronelândia entrará em fusão irreversível.
- Entre 20 a 40% da Amazónia será destruída.
- A vaga europeia de calor de 2003 — que custou mais de setenta mil vidas e 13 mil milhões de euros em colheitas perdidas, e reduziu o leito dos rios Pó, Reno e Loire a mínimos históricos — será a norma anual.
- A mortalidade humana aumentará drasticamente devido a vagas de calor, cheias e seca. Haverá um aumento desmedido da asma e outras doenças respiratórias. O número de pessoas em risco de contrair malária aumentará em várias centenas de milhões.
- Quatrocentos milhões de pessoas sofrerão com a escassez de água.
- Os oceanos mais quentes deteriorarão irreparavelmente 99% dos recifes de corais, perturbando os ecossistemas de nove milhões de espécies.
- Metade das espécies animais extinguir-se-á.
- Um total de 60% de todas as espécies vegetais extinguir-se-á.
- As colheitas de trigo terão uma redução de 12%, as de arroz 6,4%, de milho, 17,8%, e de grão de soja 6,2%.
- O PIB global per capita diminuirá cerca de 13%.
Estas são algumas das estatísticas preocupantes, cujo impacto emocional não tem grandes probabilidades de perdurar depois de concluída esta frase. Ou seja, o terrível futuro que descrevem será reconhecido pela maioria dos leitores deste livro e terá o crédito de poucos. Partilho estes números na esperança de que o leitor acredite neles. Porém, eu não acredito.
Cumprir as metas do Acordo de Paris e viver no mundo atrás descrito é o cenário mais optimista. Os poucos especialistas que pensam que temos qualquer possibilidade realista de cumprir essas metas estão a iludir-se ou, o que é mais plausível, a usar o optimismo como arma para alterar as probabilidades. A verdade é que, mesmo que conseguíssemos de alguma maneira apagar todas as luzes e interditar todos os automóveis, sem procedermos à mudança que aqueles como Gore conhecem, mas de que não falam, não temos qualquer hipótese.