A morte injusta de George Floyd parece ter aberto, felizmente, uma torneira solidária de humildade e vigilância. Mas reconhecer o privilégio branco não chega. É preciso promover o debate, longe das caixas de comentários, perto da linguagem corporal de quem nos ouve. É muito fácil perceber quando alguém deixa de nos ouvir. E muitas vezes não significa que tenha desistido da conversa. Significa que terá algo muito melhor a dizer, sobre o individualismo, sobre o excepcionalismo, sobre o quanto condena qualquer espécie de discriminação. A forte necessidade de o dizer pode apenas servir para justificar qualquer comentário inoportuno ou politicamente incorrecto que surja mais à frente na conversa. Ficamos então proibidos de apontar esses comentários — caso venham a surgir — como ofensivos, desactualizadas, pouco éticos ou simplesmente desagradáveis. Ficamos proibidos porque sabemos que, se o fizermos, a discussão passará a ser sobre semântica. Pois que seja.
Comecemos pelo termo “raça”. O que é? Uma condição? Uma doença? Uma pulseira? Uma praga? Um pecado original? Que raças existem, afinal? A raça branca existe? O certo é que na equação das ditas raças, a branquitude é a variável constante, a cor que está lá mas não carece de ser especificada, por nunca ter sido alvo de questionamento face ao seu privilégio histórico, ele próprio construído na racialização e no domínio violento sobre as minorias “não brancas”. Logo, a raça, se fosse uma doença, uma anomalia, uma mutação, estaria quimicamente afogada em genes e cromossomas brancos. Nenhuma raça é verdadeira, mas todas são reais no sentido em que sociedades, direitos, recursos e privilégios foram construídos a partir delas. Como ouvi recentemente o dirigente do SOS Racismo Mamadou Ba dizer, numa conversa acerca do lugar de fala, “o meu tom de pele não afecta em nada aquilo que sou, mas afecta certamente o lugar que ocupo na sociedade”. Há séculos que esta realidade persiste e isso vai ter de mudar.
Mas o que fazer quando os ânimos se exaltam? Qual é o tom de voz ideal para insistirmos no nosso ponto de vista, tentando não responsabilizar quem nos ouve por tudo o que apontamos como indecente e abusivo? O erro está em achar que a conversa já começa com dois lados rivais. A filósofa, feminista negra, escritora e académica Djamila Ribeiro define o lugar de fala como o espaço de questionamento do poder pelas minorias que não são consideradas “a norma” numa sociedade patriarcal: mulheres e pessoas racializadas, por exemplo. É tão importante para as minorias descobrirem o seu lugar de fala, como é importante para as pessoas brancas, as que nunca se questionaram sobre o poder porque sempre foi um dado adquirido, pensarem a partir desse lugar. Não é só a pessoa negra que pode falar de racismo. O debate tem de ser de todos e para todos.
O lugar de fala só acontece se soubermos reconhecer mutuamente a fragilidade dos nossos discursos. É preciso pôr de parte a sensibilidade dos ouvidos e a fragilidade da alma. Vai doer? Vai. A mim e a ti. Mas se nos exaltamos a falar de política, se nos indignamos com o capitalismo e as questões ambientais, se subimos a voz quando defendemos a causa feminista, a mesma honestidade emocional tem de existir quando falamos sobre racismo. Porque ele existe e a tendência para se fugir ao assunto tem os dias contados. Vai doer, mas pelo menos parte de nós já está habituada.
O racismo não é um filme americano, não é um vídeo violento, não é a morte de George Floyd, de Ahmaud Aubrey, de Alton Sterling, de Amadou Diallo, de Trayvon Martin, de Aiyana Jones, de Randy Evans, de Renisha McBride, de Marielle Franco, de Alcindo Monteiro. É uma cultura transversal. É uma decisão. E o silêncio não chega. Não basta não sermos racistas. Sejamos anti-racistas.