Maria de Lourdes Modesto celebra 90 anos: uma vida de trabalho “que lhe caiu do céu”
Começou na televisão, em 1958, e apaixonou-se pela cozinha tradicional portuguesa, sobre a qual fez o grande trabalho de recolha de receitas de todo o país – um espólio já totalmente disponível online. Com mais de meio século de carreira, Maria de Lourdes Modesto celebra 90 anos esta segunda-feira.
“Esta minha vida de trabalho, que não escolhi mas que me caiu do céu, tem-me dado não só grandes alegrias como grandes lições”, escreve Maria de Lourdes Modesto no livro Sabores com Histórias (Oficina do Livro), que reúne muitas das suas crónicas.
A celebrar esta segunda-feira 90 anos (nasceu a 1 de Junho de 1930, em Beja), e já retirada da vida pública, continua a ser, em Portugal, a grande referência da cozinha tradicional, à qual todos, sejam chefs ou amadores, voltam sempre, uma e outra vez, à procura das receitas que, nas suas fascinantes diferenças (por vezes de pormenor), mostram o que é a identidade da cozinha portuguesa – esses sabores, ingredientes e técnicas que contam muito da história do país.
Quando fala da vida que não escolheu, a autora dessa obra incontornável, o livro Cozinha Tradicional Portuguesa, está certamente a pensar nos acasos que levaram a que, por causa de uma peça na qual colaborou no Liceu Francês, onde dava aulas, tenha acabado por ser “descoberta” pela televisão. E foi com o programa de culinária que começou a apresentar em 1958 – logo no primeiro episódio demonstrou como se comia uma alcachofra – que a menina dos olhos rasgados e jeito descontraído passou a entrar em casa dos portugueses para os ensinar a cozinhar.
Numa entrevista ao PÚBLICO em 2014 recordava assim esse momento: “Eu nunca tinha visto televisão, só nos filmes em que as artistas tinham uma. Depois fui à televisão, era o Miguel de Araújo o director dos programas culturais, eu disse que não tinha preparação para fazer um programa cultural e eles insistiram. Mas eu tinha medo de perder a situação que tinha conquistado.” Teve dúvidas, pensou, e por fim disse que teria que ser “alguma coisa para as mulheres”. Inicialmente, o programa ainda incluía actividades como tratar do jardim, mas rapidamente se centrou apenas na cozinha.
Admite que nesses primeiros tempos não era sequer uma especialista em culinária. “Simplesmente, apaixonei-me por uma coisa em que fui metida.” E a cozinha tradicional nem era o seu foco principal. Muito influenciada pela cultura francesa, falava de uma cozinha mais internacional, mostrava técnicas, convidava chefs, ia aos mercados. Aprendia à medida que ensinava. E, com o seu estilo directo, prático e sem pretensões, conquistou rapidamente um público fiel.
Foi sempre muito curiosa, quando era adolescente, no Alentejo, onde vivia, o mundo chegava pela rádio e pelo cinema, e ela sonhava em sair dali e ver outras coisas. Acabou por ir para Lisboa para fazer um curso de Economia Doméstica, encantou-se com os bordados, e talvez tivesse sido esse o seu caminho não fosse a tal peça do Liceu Francês e o convite para ir para a televisão.
O mundo abriu-se. Foi convidada para a Fima-Lever (hoje Unilever), onde passou a assinar receitas com o nome de Francine Dupré. “Tive as condições todas para experimentar, comprar livros, e tive estágios no estrangeiro que foram muito importantes”, recordou na entrevista de 2014. “Passei na televisão francesa, na do Luxemburgo, na italiana, num canal alemão.”
Se a cozinha francesa era a sua referência, isso tinha a ver com o facto de ela estar codificada, o que não acontecia com a portuguesa. “Nós temos uma cozinha rústica, muito verdadeira, autêntica, franca, honesta, mas é uma cozinha de mulher e não de profissionais de cozinha.” Sabia que, em França, a par dessa alta cozinha, existia uma cozinha regional muito forte com todas as receitas catalogadas e estudadas.
E foi, afinal, a esse trabalho que acabou por dedicar grande parte da sua vida, deixando uma herança de valor incalculável para a cozinha tradicional portuguesa. Como é que isso aconteceu? Tudo começou “por pressão dos espectadores, que estavam fartos de me ver fazer cozinha francesa, e exigiam cozinha portuguesa”. Começou a fazer algumas receitas que conhecia bem e recebia sempre cartas de quem assistia ao programa e sentia que tinha alguma coisa a acrescentar – “cada uma dizia que a sua receita é que era”.
Perante tantas receitas ligeiramente diferentes de um mesmo prato, pensou: “Como é que vou resolver este problema?”. Surgiu então a ideia de um concurso para o qual as pessoas enviavam as suas receitas. Recebeu milhares delas, e, inevitavelmente, concluiu que teria que sistematizar todo esse material. Nascia o grande projecto da sua vida, o livro Cozinha Tradicional Portuguesa. “Decidi-me fazê-lo porque estava a ficar cada vez mais surda, um médico disse que eu tinha um tumor e pensei: ‘Vou morrer e não fiz o livro, é uma vergonha’”.
Foi sempre incapaz de estar quieta e, por isso, nos últimos anos voltou a este imenso espólio de receitas vindas de inúmeras cozinheiras de todo o país, e preocupou-se com o que seria de todo este material, muito dele não incluído no livro. Dedicou-se então a organizá-lo e doou todo o espólio à Associação de Cozinheiros Profissionais de Portugal (ACPP). Hoje, quem o desejar, pode consultá-lo no site da associação, onde encontrará, divididas pelas várias regiões do país, estas receitas que, como escreve Modesto, “sabem a lar”.
Mas seria uma injustiça reduzir todo o trabalho de Maria de Lourdes Modesto, autora de vários outros livros, à divulgação da cozinha tradicional. A jovem sedenta de aprender que um dia chegou a Lisboa vinda do Alentejo continuou ao longo de toda a vida a alimentar uma curiosidade insaciável por tudo, e mesmo com a saúde mais debilitada, os convites multiplicavam-se e ela aceitava ser júri de concursos, participar em debates, aparecer em jantares, deixando sempre a sua opinião fundamentada sobre o que via ou provava.
Dela pode sempre esperar-se um olhar atento e generoso, mas também, quando merecida, uma crítica certeira, e geralmente de um humor afiado – que, para os criticados, pode ser dolorosa, mas será sempre útil. É inesquecível a forma como se indignou quando descobriu que havia um pastel de bacalhau com queijo Serra da Estrela. Não poupou as palavras: “Levantei os olhos, e deparo com uma verdadeira obscenidade no ecrã do meu televisor: um pastel de bacalhau a esvair-se em queijo Serra da Estrela. Não pode vir mais a propósito a expressão: ‘com uma cajadada matar dois coelhos”’. Duas das mais queridas e conseguidas especificidades da nossa gastronomia numa pornográfica e ridícula figura! [...] Chamar a atenção para o nosso recatado país com aquela obscena imagem, parece-me obra do diabo, quiçá, do Estado Islâmico.”
Veja-se, para terminar, outro exemplo, este retirado da hilariante crónica “Os Chefes e a sua Nova Linguagem”, no já citado Sabores com Histórias: “Numa outra página, de outro autor, aprendi qualquer coisa: ‘vieiras em cozedura unilateral com tagliatelli de mexilhão e molho de griséus’. Veja-se como convivem bem os vários estilos linguísticos no nome deste prato, mas como é enganoso: a cozedura afinal era na base, afirmava-se. Fico a dever-lhe o vistão que farei quando chegar à tasquinha onde costumo comer ‘jaquinzinhos com arroz de tomate’ e gritar bem alto: para os jaquinzinhos, cozedura bilateral, por favor.”