The Midnight Gospel: o amor, a morte e tudo o resto num louco fim do universo
A nova série de animação da Netflix mergulha em cenários apocalípticos e deixa-se guiar por reflexões existencialistas sobre algumas das maiores inquietações da existência humana.
O presidente de uma versão alternativa da Terra dispara contra a alcateia de zombies que está a tentar destruir o planeta ao mesmo tempo que responde a questões sobre a legalização de drogas psicadélicas e os benefícios da meditação. Um hipopótamo explica de que maneira a espiritualidade pode influenciar as formas como olhamos para as tragédias ou as despedidas enquanto percorre o sombrio percurso de um matadouro. A Morte, o clássico visual de grim reaper misturado com um olho gigante e um chapéu de aniversário, aponta para o desafio e a necessidade de aceitarmos os “eus” imperfeitos que tentamos esconder.
Estes exemplos mal arranham a superfície da estranha e espantosa sopa alucinada que é The Midnight Gospel, série da Netflix que se estreou a 20 de Abril. Aqui, entre os cenários mais apocalípticos, bizarros e coloridos, somos convidados a ouvir e viajar por reflexões sobre o significado da vida, para onde vamos depois dela e como fazer a estranha travessia pelo meio.
A obra leva a assinatura de Pendleton Ward, animador e argumentista responsável pelo clássico Adventure Time, e Duncan Trussell, humorista e autor de Duncan Trussell Family Hour, podcast onde o tema das discussões costuma escapar para os campos de meditação, mindfulness, religião e existencialismo, entre outros assuntos. Ward, que, em 2016, fez aparições enquanto convidado especial em duas das quase 400 edições do programa — muitas das quais publicadas este ano, durante os meses de emergência e confinamento —, propôs a ideia de transformar algumas das melhores conversas num projecto de animação. Assim nasceu The Midnight Gospel, ou o que os seus criadores descrevem ao jornal Observer como “o que aconteceria se pegasses no Indiana Jones e trocasses os diálogos por falatório de podcast”.
Apesar da apresentação descomprometida, que muitas vezes lembra Rick and Morty e aposta as suas fichas na saturação, a premissa é explicada de forma relativamente clara no primeiro de oito episódios. Clancy Gilroy — que, bem vistas as coisas, se apresenta com uma versão exagerada do incontornável chapéu de cowboy de Harrison Ford —, não propriamente humano e não necessariamente alienígena, tem um “simulador de universos” que usa para explorar mundos em diferentes estados de caos e fragmentação — sendo que pode escolher para si mesmo um avatar distinto a cada viagem que faz pelas estrelas. Uma vez dentro dos maravilhosamente invulgares planetas, o bichinho rosado de voz aguda e olhos verdes esbugalhados entrevista os seres que os habitam para o seu spacesast — que, no fundo, é a mesma coisa que um podcast, mas “vai para o espaço todo”.
Um conceito simples, que talvez não se aguentaria por si só se as conversas de Duncan Trussell Family Hour que o suportam, desconstruindo com serenidade e lucidez alguns dos maiores medos da nossa existência, não fossem tão extraordinariamente impactantes.
Há histórias e perspectivas fascinantes que escorregam entre as vertiginosas sequências de desmantelamento nas paisagens que Clancy vai descobrindo. O hipopótamo a que fazíamos referência anteriormente é, na verdade, uma versão extrapolada de Anne Lamott, autora que, aponta Duncan Trussell no seu site, escreveu o romance Hard Laughter “em homenagem ao pai” quando lhe foi diagnosticado um cancro no cérebro.
“Uma amiga muito próxima da família também ficou doente por volta daquela altura. Eles ficavam sentados no quintal e o meu pai perguntava-lhe muito alto: ‘Então, como é que está o teu cancro hoje?’ Ela ria-se e respondia: ‘Está mais ou menos, e o teu?’ Reconhecer que um dia vai chegar a nossa vez de partir é tão libertador”, conta o animal a quem dá voz em The Midnight Gospel, que, à medida que é lentamente transformado em rodelas de carne no matadouro, sugere que olhemos para a morte como um parto. “Primeiro, vêm as contracções, mas depois respiras. Depois, quando surgem as dores de novo, pensas: ‘Tem calma, lembras-te como correu tudo bem da outra vez?’ E voltas a ter paz.”
Esta é uma das ocasiões em que as imagens projectadas no ecrã vão ao encontro das palavras que estão a ser ditas. Não que seja sempre essa a norma. Por vezes, o tom de desarrumação alucinante — com cidades dominadas por palhaços descontrolados, navios comandados por uma tripulação de gatos ou espelhos que mostram reflexos infinitos de demónios e fantasminhas — quase compete com os comentários pelo privilegiado lugar no centro da narrativa.
Sobreviverá o amor
Se, de vez em quando, sentimos que precisamos de voltar atrás porque não conseguimos ouvir as histórias conforme desejávamos, os resultados desta abordagem são surpreendentemente desarmantes no primeiro episódio, com o presidente, afectuosamente conhecido como “Mr. Glasses Man”, que reage ao apocalipse como se nada fosse — ou com a calma de quem se habituou de tal modo ao desastre que já não fica assustado com o que vê.
Mas os momentos verdadeiramente gratificantes de The Midnight Gospel são aqueles que dão lugar à vulnerabilidade, como a que faz do último episódio o seu triunfo principal, com a entrevista que Duncan Trussell fez à sua mãe, Deneen Fendig, pouco antes do seu desaparecimento, vítima de cancro da mama. De repente, o excesso de adrenalina dos universos a um passo do colapso sai de cena e é substituído pela tranquilidade de um sonho. Num leve mundo de ursinhos, um Clancy bebé é embalado por Deneen, que o leva num passeio pelas memórias que criaram juntos.
As duas personagens envelhecem gradualmente, até Clancy ganhar o cabelo e a barba de Duncan, e, antes de se metamorfosearem, adquirindo a forma de pequenos planetas numa rota de desintegração, lançam uma questão daquelas complicadas: quando o dia de dizer adeus bate à porta para quem amamos, como é que cuidamos de um coração partido? Para uma série com tanto para dizer sobre tantos assuntos diferentes, a resposta é fantasticamente tocante na sua simplicidade. “Tu choras! Tu choras...”
São pesados e difíceis os tópicos que The Midnight Gospel escolhe abordar, no meio de catástrofes imaginadas que podem ou não estar relacionadas com a verdadeira que agora nos afronta. Para alguns dos entrevistados de Trussell virados seres obtusos e espectaculares, as soluções podem passar pela meditação. Outros, talvez, voltarão os olhos para a necessidade de vivermos no presente tanto quanto conseguirmos. Quando nada mais resulta, choramos. Procuramos conforto na ideia de que, mesmo perante o desespero, mesmo com a mutação de um sinistro novo mundo e a decadência do velho, sobreviverá o amor.