Space Force tenta voar alto — mas despenha-se pelo caminho

Os criadores da versão americana de The Office e um elenco cheio de estrelas não são suficientes para fazer de Space Force um sucesso. A relação entre Steve Carell e John Malkovich é um dos poucos pontos fortes numa série que aponta o dedo à crise política dos Estados Unidos sem oferecer grande resolução.

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Série foi divulgada um dia antes da segunda tentativa de lançamento do foguetão da SpaceX DR

Em teoria, a receita é perfeita. O conceito é assinado por Steve Carell, protagonista da adaptação americana do fenómeno The Office, e Greg Daniels, o seu criador. O elenco junta nomes como Carell, John Malkovich, Ben Schwartz (conhecido pelo papel de Jean-Ralphio em Parks and Recreation, outro dos grandes produtos de Daniels), Lisa Kudrow ou ainda o falecido Fred Willard. Em cima disto tudo, temos o selo da Netflix para prometer uma saborosa cereja no topo do bolo. No entanto, e apesar de estarmos a falar daquela que era uma das grandes apostas da plataforma de streaming para 2020, Space Force nunca chega a atingir os altos voos a que se propõe.

A série (divulgada a 29 de Maio, um dia antes da segunda tentativa de lançamento do foguetão da SpaceX, ironicamente ou não) tropeça com frequência sobre si mesma porque, perante o estranho clima político sobre o qual tenta agir, poucas vezes consegue ser mais do que uma confusa caricatura de várias caricaturas misturadas. Carell é o general Mark R. Naird, um condecorado homem de armas tipicamente no-nonsense que, depois de promovido, é nomeado responsável pela “Space Force”, o novo departamento do Pentágono. Isto apesar da sua desilusão, uma vez que pensava ter a chefia da Força Aérea, o seu cargo de sonho, nas mãos. Acontece que o “POTUS” (President of the United States, que na série não tem nome, mas, através dos ridículos tweets e das mensagens através das quais se manifesta, corresponde a uma versão muito implícita de Donald Trump) quer “botas na Lua até 2024”. Os Estados Unidos não podem deixar-se ficar atrás da Rússia, afinal de contas. Ou será da China desta vez? É difícil de dizer, a Casa Branca desconfia dos dois países.

No fundo, este é um dos muitos problemas do guião. À medida que circulamos pelos episódios, o que sabemos a respeito de Naird? Não gosta do duvidoso Yuri (russo, claro), com quem se cruza várias vezes na base espacial secreta de Colorado, para onde teve de se mudar com a mulher e a filha. Manda a ocasional alfinetada ao investigador Chan Kaifang (chinês, obviamente). Tolera emigrantes por pouco, é patriota até aos cabelos, tem a voz grossa de um comandante do exército e, claro, não percebe nada de ciência.

Conseguimos entender as referências e os vários alvos das piadas, mas podemos mesmo falar de piadas? Quando se exalta a respeito da União Europeia, o desajeitado general atira: “O que vamos ter depois do ‘Brexit'? Frexit, Swexit?” Quem mais se opõe ao financiamento milionário da base de investigação, que passa os primeiros episódios a fazer pouco mais do que rebentar com protótipos, é uma “deputada jovem e zangada” que se chama Anabela Ysidro-Campos (percebe-se pelo nome que não houve um grande esforço para esconder a verdadeira congressista que esta personagem representa, entre a sua dose de clichés), opinativa e sempre de voz ácida. Infelizmente, na maior parte das vezes, Space Force parece não subir o resto das escadas depois de passar o primeiro degrau a apontar o dedo. Reconhecendo o exagero na comparação, estes exemplos lembram uma versão alternativa da nova era dos The Simpsons, em que Lady Gaga ou Tony Hawk fazem cameos espontâneos e a grande punchline do episódio resulta em “olhem só, é o Tony Hawk”.

Alívio cómico

Sem surpresa, os momentos mais gratificantes são os que exploram a dinâmica entre Carell e Malkovich, aqui Adrian Mallory, o apaixonado cientista que não consegue disfarçar a dor interna que sente por ter de apresentar resultados a quem não entende um terço do que eles significam. Quando não se cansam no meio de cabeçadas e frustrações, os dois conversam calmamente sobre como não fazer da gerência desta empreitada espacial, pela qual Naird não demora a ser gozado pelos seus pares nos altos escalões do Governo, um completo fracasso. Malkovich é a salvação de Space Force, a postura serena e a voz da razão num departamento em que tudo o resto funciona ao contrário.

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A relação entre Carell e Malkovich é um dos momentos altos de "Space Force" DR
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A série fica marcada pela última participação de Fred Willard num projecto antes da sua morte DR

Outra das agradáveis surpresas surge na forma de Tawny Newsome, que tem na jovem capitã Angela Ali uma das poucas recrutas no grupo de trabalho com uma ideia de personalidade e não um acumular de tiques ou excentricidades. Por falar em tiques, Tony Scarapiducci (papel de Ben Schwartz), o gestor de redes sociais da “Space Force” com ares de espertalhão que não se preocupa lá muito com consequências ou coisas parecidas, é uma personagem escrita para alívio cómico que se esquece de cumprir a única tarefa para a qual existe. Donald Trump escreve tweets parvos, está estabelecido. A série bate com insistência nessa tecla, esquecendo-se que o resto do teclado também está à sua disposição.

A família de Naird também é inexplicavelmente pouco trabalhada por Carell e Daniels — que, no início de Maio, estreou também Upload, série disponível na Amazon. A mulher do comandante, triste por ter de trocar Washington pelo deserto árido e as montanhas rochosas do Colorado, aparece dentro de uma prisão no segundo episódio. Não sabemos muito bem porquê, e aparentemente isso não é assim tão importante, dado que apenas aparece em cinco dos dez episódios. A filha, Erin, tem alguns dos seus melhores momentos quando faz os trabalhos de casa de Matemática com um exausto Naird ou quando encontra na capitã Ali uma confidente e amiga, mas não recebe suficiente tempo de ecrã para se afastar do estereótipo de “adolescente problemática com rasgos de rebeldia”. Sem surpresa, novamente, é Fred Willard, o avô com tremeliques extraordinários e problemas de memória graves, quem compensa por essas falhas — e é uma pena que só tenha podido aparecer em três episódios.

A receita parecia perfeita. Os ingredientes estavam todos lá. É uma pena que esta produção gaste os seus milhões nos efeitos especiais e na apresentação cinematográfica — que é, efectivamente, notável — do que na criação de uma história com personagens que fazem lembrar pessoas verdadeiras. Space Force não é um fracasso — podemos sempre contar com Malkovich, Willard e, embora não com a consistência ou o charme a que nos habituou, Carell — para salvar o dia. Mas, se o céu (ou o espaço, vá) é o limite, este decididamente não é um caso de “mission accomplished”.

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