“Enquanto uns choram, outros vendem lenços” enquanto choram

Exausta, conseguiu aumentar em 60 o número de máscaras produzidas, um total de 260 por dia. Feitas as contas dá uma máscara a cada minuto e meio. Duzentas e sessenta por dia: é pouco ou é muito? É muito pouco, foi despedida (a minha e outras mães) duas semanas depois de ter começado, por insuficiência na produção.

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Kris Atomic/Unsplash

A minha mãe faz parte da geração de mulheres costureiras que levou às costas o famigerado período de expansão da indústria têxtil portuguesa. Trabalhou numa fábrica de confecções até eu nascer, momento em que foi despedida. Anos mais tarde passou por todo o tipo de cursos do centro de emprego e uma variedade absurda de profissões até a minha irmã nascer, momento em que foi despedida. Há 17 anos que não tinha um emprego.

Recebeu com entusiasmo a notícia de que tinha sido contratada para trabalhar como costureira. A empresa, que comercializava brindes, tinha decidido começar a produzir máscaras de protecção e estava a recrutar costureiras, bravo. As condições não estavam acima do expectável e previsível: ordenado mínimo, cinco dias por semana das 16h30 à 1h, duas pausas de 15 minutos e uma de 30 para jantar, contrato temporário com termo indefinido e 30 dias à experiência. Mas, e acima de tudo, ser costureira serviria um serviço público urgente, que bela conjuntura.

Dois dias depois de começar a trabalhar, passou rapidamente do entusiasmo ao cansaço extremo, com dores muito fortes nas costas e na cabeça. Dizíamos que talvez fosse falta de hábito, dizíamos que talvez fossem lesões crónicas do período em que trabalhou dobrada sobre aquelas mesmas máquinas. O idealismo e a poesia que comecei por ver nesta chamada foram-se evaporando. Sim, não deixa de ser um negócio; e não, não vai ficar tudo bem.

Fui fazendo perguntas sobre como estava a correr e o cansaço era sempre assunto: “As colegas são simpáticas, mas as dores nas costas; é bom estar a sentir-me útil e a ganhar dinheiro, mas as dores de cabeça; é engraçado ver a sinfonia dos oito microondas a apitar na hora de jantar, mas desde que comecei a trabalhar aqui que ando com um gosto amargo na boca”.

No início da semana, foram alertadas pela encarregada de linha de que teriam de aumentar o número de produção, sem nunca ninguém lhes ter dito qual seria o mínimo. Exausta, conseguiu aumentar em 60 o número de máscaras produzidas, um total de 260 por dia. Feitas as contas dá uma máscara a cada minuto e meio. Duzentas e sessenta por dia: é pouco ou é muito? É muito pouco, foi despedida (a minha e outras mães) duas semanas depois de ter começado, por insuficiência na produção.

A empresa diz ao consumidor que a encomenda mínima é de dez máscaras, chamam-lhe “Pack 10 Máscaras Sociais” e atribuem-lhe o valor de 63,65 euros, ou seja, 6,36 euros por máscara. Dividindo o salário líquido de uma costureira por máscara costurada, com uma média de produção de 260 por dia (e há quem ultrapasse as 300), a empresa paga dez cêntimos por máscara a cada costureira. Na verdade, o valor é ainda menor, porque as que conseguiram manter o posto de trabalho fazem uma média de 300 máscaras sociais por dia. Quanto a lucros, é fazer as contas.

Estamos fartos de saber que a maioria dos contratos em Portugal é feita, com sorte, no limite da lei e sem salvaguardar condições mínimas de saúde; estamos também fartos de saber que a pouca oferta de emprego exponencia a possibilidade de condutas esclavagistas no seio das melhores intenções e que o ordenado mínimo, que deveria ser apenas um valor de referência, continua a ser o mais praticado no país. Se há alguma novidade, mais do que evidente, no meio disto tudo, é a de que este “Sr. Covid” não vem sozinho, tem muitos amigos.

Estou tão entalada, filho.” Estamos todos, mãe.

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