Por fim, conseguimos ver apenas Yoko Ono
Durante décadas, foi como se apenas tivesse nascido no momento em que o seu caminho se cruzou com o de John Lennon. Que chegou a descrevê-la como “a mais famosa artista desconhecida do mundo”. Era verdade então, mas agora já a conseguimos ver claramente. Agora, conhecemos Yoko Ono.
Os olhos do mundo centraram-se nela em 1968, quando se juntou ao homem que, no ano seguinte, se tornaria o seu terceiro marido. O casamento foi cerimónia discreta, selada em dez minutos no Consulado Britânico de Gibraltar, e foi, ao mesmo tempo, acontecimento exposto mundialmente enquanto gesto artístico. Ballad of John & Yoko, canção que detalha com precisão diarística todo o processo, foi editada pouco depois e transformou-se num êxito global. O terceiro marido de Yoko Ono chamava-se John Lennon e integrava os Beatles, a mais célebre banda de todos os tempos. Como não haviam os olhos do mundo de se centrarem nela?
Durante muitos anos, contou-se a história de Yoko Ono como se ela começasse no preciso momento em que John Lennon surgiu a seu lado. Aí teria nascido a mulher que desencadeava um turbilhão de sentimentos, entre pulsões odiosas como misoginia e racismo, acusações tornadas lenda oficial – “a mulher que acabou com os Beatles” – e, reflexo disso, uma profunda incompreensão e a total ignorância quanto ao percurso, ao pensamento e à acção da mulher que viera ao mundo em Tóquio a 18 de Fevereiro de 1933. Filha de uma pintora que lhe recomendava nunca casar e não ter filhos – como acto de rebeldia, casou e teve-os – e de um aspirante a pianista, obrigado pela família a trocar a vocação pela banca, que lhe dizia que também ela nunca seria pianista, porque tinha as mãos pequenas, nem compositora, porque a história não registava mulheres de relevo nessa área, Yoko Ono faria do combate a esse preconceito entranhado parte determinante da sua criação.
Em 1964, em Tóquio, organizou uma sessão de cinema em que era pedido aos espectadores que, durante a projecção, ignorassem a presença de Rock Hudson, vendo apenas Doris Day. No mesmo ano, criou uma das suas performances mais célebres, Cut Piece – sentada no chão, imóvel e inexpressiva, enquanto o público era convidado a cortar com uma tesoura a roupa que vestia. Em 1971, montou no MoMa uma exposição retrospectiva do seu trabalho – uma exposição imaginária: o seu objectivo, décadas antes do movimento #MeToo, era denunciar a ausência de artistas femininas na instituição nova-iorquina. Em 2020, quando preparava para Serralves aquela que será a sua primeira retrospectiva em Portugal, convidou mulheres que tenham sofrido discriminação de género a contribuírem com pequenas peças para Arising, uma das secções da exposição.
Longo era já o percurso de Yoko Ono quando se juntou a John Lennon, relação que amplificou o seu raio de acção enquanto, paradoxalmente, obscureceu a sua posição enquanto artista. Lennon descreveu-a certo dia como “a mais famosa artista desconhecida do mundo: toda a gente sabe o seu nome e ninguém sabe verdadeiramente o que ela faz”. Nele, Yoko encontrou um par, alguém que promovia uma relação absolutamente igualitária e que se motivava com as suas ideias e ambições. Com ele, ganhou também o palco ideal para expor a uma escala inaudita o seu desejo de esbater o mais possível as fronteiras entre arte e vida quotidiana, entre a obra de arte enquanto criação exclusiva do seu autor ou gesto que só se completa com a intervenção do outro – exemplo paradigmático, o livro Grapefruit, colecção de instruções que são a obra e a sua projecção, e que aguarda apenas o momento em que alguém as concretize no mundo físico.
As performances que criava no início da década de 1960 no seu loft nova-iorquino, frequentadas por La Monte Young, John Cage, Marcel Duchamp ou Peggy Guggenheim, e a sua colaboração com o Fluxus – a primeira exposição individual surge por convite do fundador do movimento, George Maciunas —, fizeram dela um nome respeitado na vanguarda americana. Carregou consigo essa aura quando se mudou para Londres. Quando criou com Lennon o emblemático Bed in pela paz em Amesterdão, 1969, happening feito acontecimento mediático feito happening, estava a aplicar precisamente os mesmos métodos e a mesma forma de acção que antes haviam ficado reservados a um meio artístico que considerava demasiado fechado sobre si mesmo. O mesmo testemunhámos, aliás, quando, inspirada pelo força transformadora e pelo impacto popular do rock’n’roll, criou com Lennon álbuns de música experimental como Two Virgins, ou quando a sua música a solo se viu referida como referência por bandas como os B’52s ou os Sonic Youth.
Neste 2020 em que Serralves inaugura Yoko Ono: o jardim da aprendizagem da liberdade, a artista nascida em Tóquio há 87 anos já se libertou do peso que carregou e da incompreensão a que foi votada durante muito tempo — "bruxa”, chamavam-lhe nos anos 1960 e ela voltou o insulto a seu favor: Yes, I'm a Witch, é o título do álbum que editou em 2007. Pouco a pouco, essa nuvem foi-se dissipando, a história foi sendo redescoberta na sua justa dimensão, a história continuou a ser escrita. Hoje, tal como Lennon afirmou outrora, todos conhecemos o nome Yoko Ono. Mas sabemos exactamente o que faz.