E, de repente, tudo muda. A saúde mental no SNS tem de responder
A resposta da saúde mental no âmbito do SNS tem um enorme desafio neste momento: atuar enquanto a normalidade social possível está a ser gradualmente restabelecida e antecipar as necessidades, e as respostas, no médio e longo prazo.
A capacidade de adaptação humana é grande, como os últimos tempos têm mostrado. Há uns tempos – como a noção de tempo é relativa, credo, parece que foi há uma eternidade –, um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública citado pela TSF mostrava, através da análise de dados da Google Maps de janeiro e março, que “de facto, houve uma mudança significativa nos hábitos dos portugueses”.
As nossas mentes são as “culpadas” dessa capacidade de adaptação e de resposta a novas realidades. Mas têm limites, as de todos nós.
É impossível não reagirmos à atual situação de pandemia, temos um aparelho emocional e uma estrutura cognitiva que dependem, também, do meio que nos rodeia.
Claro que nem todas as pessoas vão ter uma doença mental, mas os riscos de sofrer emocionalmente e de adoecer são mais elevados que o habitual e precisamos ter isso em atenção, cada um de nós individualmente e a estrutura social como um todo. Só assim conseguiremos deitar mão de medidas e estratégias preventivas do sofrimento e da doença mental e, por outro lado, tentar que quem já está, ou já é, doente não agrave a sua situação.
Não existe uma receita única e universal que se possa aplicar em todas as realidades e contextos. No entanto, existe um determinado número de medidas que constitui a pedra angular das respostas às necessidades sempre mutáveis e evolutivas das populações, quando expostas a situações como a da atual pandemia.
Estas medidas foram elencadas de forma clara num documento recentemente lançado pelas Nações Unidas ("Covid-19 and the Need for Action on Mental Health"), de que o secretário-geral destacou, entre outros, dois requisitos fundamentais: o apoio ao desenvolvimento dos serviços de saúde mental e a ênfase da prestação de cuidados na comunidade.
Em termos locais, é importante constatar que a estratégia seguida em Portugal foi perfeitamente sobreponível a estes requisitos. Do lado dos serviços de saúde mental, a obrigação foi reorganizarem-se no sentido de dar uma resposta às necessidades, às novas e às antigas, com a dificuldade acrescida de essa resposta ter sido dada, na maioria das vezes, de forma não presencial. Não foi uma tarefa fácil, mas as estruturas do SNS fizeram-no. Foram realizadas durante o mês de abril milhares de consultas de psiquiatria e pedopsiquiatria, de psicologia e de enfermagem de saúde mental. Em muitos locais do país, e contrariando a tendência geral no SNS, o número de consultas aumentou em comparação com abril de 2019.
Agora que o período de desconfinamento chegou, e com ele a alegria das pequenas coisas que nos parecem grandes conquistas mas também a possibilidade de maior exposição daquilo que o confinamento escondeu, é altura de pensarmos o futuro. A resposta da saúde mental no âmbito do SNS tem um enorme desafio neste momento, atuar enquanto a normalidade social possível está a ser gradualmente restabelecida e antecipar as necessidades, e as respostas, no médio e longo prazo.
O modelo de intervenção a seguir pelos serviços públicos de saúde mental tem de assentar no funcionamento articulado entre as ARS, os ACeS e os Serviços Locais de Saúde Mental, em rede com as várias estruturas da comunidade. É expectável que as condições sociais e económicas contribuam decisivamente para um aumento da prevalência dos problemas de saúde mental. Implementadas as respostas na fase mais aguda, importa começar a trabalhar e a organizar os serviços para a nova etapa, tal como é preconizado no documento das Nações Unidas, nomeadamente quanto ao reforço da vertente comunitária da prestação dos cuidados. E aqui importa não esquecer os serviços de Psiquiatria da Infância e da Adolescência, particularmente carenciados em todo o território nacional.
A falta crónica de recursos humanos, principal “instrumento” da atividade clínica de quem trabalha nesta área da saúde, o reduzido número e a inexistência de uma implementação generalizada de equipas comunitárias de saúde mental no país e a reduzida literacia em saúde mental são os principais fatores a equacionar para o desenvolvimento da resposta necessária.
A Lei de Orçamento do Estado 2020 foi publicada já no decorrer desta pandemia. No seu artigo 270 pode ler-se “Em 2020, o Governo confere prioridade à implementação do plano nacional de saúde mental, nomeadamente mediante:
a) O funcionamento de equipas de saúde mental comunitárias de adultos, de infância e adolescência, em sistemas locais de saúde mental de cada uma das cinco administrações regionais de saúde, com a implementação de programas de prevenção e tratamento da ansiedade e depressão;
b) A instalação de respostas de internamento de psiquiatria e saúde mental nos hospitais de agudos que ainda não dispõem desta valência;
c) A dispensa gratuita de fármacos antipsicóticos nas consultas de especialidade hospitalar em termos a regulamentar ou, se for o caso, de medicina geral e familiar;
d) A oferta de cuidados continuados integrados de saúde mental em todas as regiões de saúde;
e) A requalificação da Unidade de Psiquiatria Forense do Hospital Sobral Cid do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, E.P.E.”
Também na Lei 3/2020, de 31 de março, “Grandes Opções do Plano para 2020”, a saúde mental é referida quatro vezes, com orientações relativas à “prestação dos cuidados de saúde nos Estabelecimentos Prisionais e Centros Educativos”, ao “acesso a cuidados de saúde da população reclusa, designadamente ao nível da saúde mental”, ao incentivo à “criação de projetos-piloto que tragam novas formas de dar resposta aos cuidados continuados, paliativos, de saúde mental, privilegiando a resposta em prestação de cuidados no domicílio” e à criação de “equipas de saúde mental comunitárias junto das Administrações Regionais de Saúde”.
O caminho apontado parece o certo e o necessário, agora ainda mais que anteriormente. Tornar estas determinações uma realidade, aumentar os recursos humanos nesta área – mas também desenvolver estratégias concertadas de resposta nos diferentes níveis de cuidados, o aumento absoluto do número de nada servirá se tal não for feito – e investir de forma determinada na literacia em saúde mental são, do nosso ponto de vista, as grandes linhas de desenvolvimento em que deveremos apostar. Repensar o modelo de financiamento da saúde mental e fazer um investimento real na investigação aplicada nesta área constituem outros dois aspetos que deverão ser investidos.
A saúde mental no SNS fez das “tripas coração “para dar uma resposta, mas precisa de mais para fazer mais e ainda melhor. Mais que continuar-se apenas a estudar transversalmente se as pessoas reportam mais ou menos problemas de saúde mental, e a cultivar uma ideia de fragilidade global na organização das respostas às necessidades, temos de cerrar fileiras e avançar para soluções. Não podemos esquecer nunca que os mais vulneráveis – os mais pobres, os desempregados, os velhos doentes, as crianças em risco, os doentes psiquiátricos graves – vão precisar de uma intervenção clínica integrada e transversal, só possível através do trabalho de equipas multiprofissionais bem treinadas.
Cada um se adapta como pode, a saúde mental no SNS precisa responder como deve.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico