Brasil: entre os vírus e os tiros

Para quem se choca com o desprezo da Presidência do país em relação à escalada de mortes pela covid-19, que ameaça não só o Brasil mas o controle do coronavírus no mundo, não se engane: a vida de parte dos brasileiros, para as autoridades e para uma parte privilegiada da população, nunca valeu muito.

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Reuters/SERGIO MORAES

Um vídeo que circulava pelas redes sociais brasileiras na semana passada mostra o diálogo angustiado de dois rapazes negros. Paramentados com jardineiras brancas e máscaras semelhantes às usadas por profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à covid-19, eles estiveram, poucos minutos antes, também na linha de tiro.

“São genocidas!”, dispara um deles, que é contido pelo seu interlocutor. “Sempre foi assim. Nós é preto, mano. Então se acalma. Nós acabamos de distribuir 200 cestas básicas. Eu não vou te perder.”

A dupla era voluntária da Frente CDD, grupo da Cidade de Deus (a famosa favela do Rio de Janeiro retratada no filme de Fernando Meirelles) que se mobilizou para distribuir alimentos e equipamentos de protecção contra a covid-19 na comunidade, diante da falta de qualquer acção equivalente do Estado.

Quando entregavam mantimentos, foram surpreendidos pela incursão de um veículo blindado da Polícia Militar do Rio, conhecido pelo sugestivo nome de “caveirão”. E pelos disparos.

Operações policiais como essa, que colocam em risco a vida de moradores de favelas, continuavam no Brasil até à semana passada, mesmo durante a pandemia e com as ordens das autoridades locais para que todos fiquem em casa. Foram quatro acções por dia no Rio de Janeiro, em média, desde a quarentena obrigatória declarada pelo governo do estado, segundo o jornal O Globo. Um episódio semelhante ao da Cidade de Deus aconteceu durante uma acção de distribuição de alimentos na favela da Providência, também no Rio, no dia 21.

Enquanto isso, as favelas do Rio somavam, a 22 de Maio, 192 mortes por coronavírus, mais do que 14 dos 27 estados brasileiros, segundo o jornal Voz das Comunidades.

Para quem se choca com o desprezo da Presidência do país em relação à escalada de mortes pela covid-19, que ameaça não só o Brasil mas o controle do coronavírus no mundo, não se engane: a vida de parte dos brasileiros, para as autoridades e para uma parte privilegiada da população, nunca valeu muito. Enquanto a maioria dos países toma medidas para preservar vidas, no Brasil, o Estado ainda empreende operações para matar.

O coronavírus vem apenas como uma moldura nova para uma cena comum. Antes de ele surgir, o Brasil assistia, com naturalidade, ao assassinato de um jovem negro a cada 23 minutos, como identificou um inquérito parlamentar no Senado em 2016.

Além da pandemia, o Brasil é acometido pelas doenças endémicas que nunca enfrentou: o racismo e a desigualdade no acesso a direitos básicos. Não por acaso, o actual governador do Rio, Wilson Witzel, foi eleito com a promessa de usar franco-atiradores para executar suspeitos em favelas. Já o presidente, Jair Bolsonaro, tentou aprovar medidas que dificultassem a responsabilização de policiais caso matassem em suas acções.

Se a ordem é ficar em casa, era lá que estava João Pedro, de 14 anos, morador de uma comunidade pobre da Região Metropolitana do Rio, quando as paredes da residência foram fuziladas durante uma operação policial no dia 18 de Maio. Sua família identificou o corpo no mesmo dia em que o Brasil rompeu a barreira de mil mortes diárias pela covid-19.

No Alemão, outro conjunto de favelas do Rio, cenas dantescas de corpos jogados nas ruas, registadas no último dia 15, chamaram a atenção da imprensa mundial. De novo, porém, nada tinham a ver com a pandemia: uma operação policial terminou com 13 mortos por tiros.

Sem resultados concretos no combate ao crime organizado, as operações violentas, historicamente, não causam na sociedade a mobilização suficiente para que sejam revistas de forma definitiva. A acção na Cidade de Deus terminou com uma morte e a apreensão de uma única pistola.

Um dia depois do episódio, o grupo de voluntários que actuava na comunidade publicou no Instagram: “A pandemia não é a única preocupação que nós temos diariamente. O coronavírus social dói na alma”. Mesmo com essa dor latente, de viseiras e máscaras, eles voltaram às ruas da favela.

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