Câmara de Lisboa desiste de exigir bolsa de horas a artistas contemplados com apoio de emergência
A disposição que está a provocar polémica vai ser revogada já na sexta-feira. Ao PÚBLICO, a vereadora da Cultura, Catarina Vaz Pinto, explica que a prestação de 30 horas de trabalho só estava prevista para os artistas apoiados com o montante máximo de 1900 euros, que não chegou a ser atingido. E que se trataria de “uma prestação pontual de carácter social”, tal como previsto no regulamento.
A Câmara Municipal de Lisboa (CML) vai revogar a disposição que exigia uma bolsa de até 30 horas de trabalho aos artistas contemplados com o apoio de emergência – um montante total de 500 mil euros repartido por 232 pessoas singulares e 46 pessoas colectivas. A contrapartida que estava a ser exigida aos beneficiários, levando alguns deles, como o actor e produtor Filipe Crawford, a renunciar ao valor que lhes foi atribuído, vai deixar de ser condição para a concessão do apoio, adiantou ao PÚBLICO a vereadora da Cultura da autarquia, acrescentando que a decisão deverá ser formalizada na reunião do executivo camarário de sexta-feira.
“Estou perplexo! Não sei se ria ou se chore. Acabo de ser notificado pela Divisão de Acção Cultural da Câmara Municipal de Lisboa, num ofício assinado pela Vereadora da Cultura, a Dra. Catarina Vaz Pinto, de que tinha sido contemplado com um apoio de 154,69 euros, ao abrigo do programa de Apoio Extraordinário à Cultura lançado por este município em finais de Abril. Não quero desprezar o apoio, que seria bem-vindo nesta altura em que há muita gente a passar fome, não só na Cultura, mas também noutras áreas, mas há um problema: é que, para receber esse dinheiro, tenho de me comprometer a dar até 30 horas do meu trabalho à autarquia”, escreveu Filipe Crawford na sua página de Facebook na noite de terça-feira, considerando que o apoio se revelou afinal “uma aquisição de serviços” em que a CML “se propõe adquirir 30 horas de trabalho especializado por, mais ou menos, 5€/hora”.
Ao PÚBLICO, Catarina Vaz Pinto esclareceu esta tarde que nunca foi intenção da autarquia exigir “uma prestação de serviços” aos beneficiários deste apoio a título “urgente e imediato”, e que o regulamento previa explicitamente “uma prestação pontual e com carácter social” a acordar posteriormente entre as partes. Uma das cláusulas do documento previa, de facto, que “como contrapartida ao apoio concedido” os beneficiários se obrigariam “a desenvolver um projecto cultural, a disponibilizar entradas nas suas actividades, a pontualmente disponibilizar as suas instalações, ou ainda a garantir outra [contrapartida] consentânea com a actividade que desenvolvem e com os meios que detêm, em termos a acordar [com] a Direcção Municipal de Cultura, desde que não prejudiquem o funcionamento normal da entidade”.
Mas as 30 horas de trabalho que constam da notificação enviada aos beneficiários, explica a vereadora, correspondiam à contrapartida fixada para o tecto máximo de apoio, no valor de 1900 euros, montante que não chegou a ser atingido. A bolsa de horas a exigir ao beneficiário “seria sempre proporcional ao apoio concedido”.
Dado o elevado número de candidaturas a este apoio de emergência a que a CML começou por destinar 250 mil euros, e cuja dotação acabou por duplicar para meio milhão, o valor máximo atribuído a pessoas singulares foi de 1143 euros, ficando-se o valor médio desta prestação excepcional pelos 675 euros. "Os casos em que o apoio ficou entre os cem e os 200 euros, e nos quais se inclui a situação que gerou mais polémica, são muito poucos. Uma das questões que colocávamos no formulário do pedido de apoio era se o requerente já estava a beneficiar de outro apoio extraordinário, porque, sabendo que o financiamento seria sempre exíguo para as necessidades, quisemos actuar numa lógica de complementaridade com os apoios disponibilizados pela Segurança Social, pelo Ministério da Cultura e pela Fundação Calouste Gulbenkian. O actor Filipe Crawford já era beneficiário de outro apoio”, ressalva a responsável pelo pelouro da Cultura da capital.
Catarina Vaz Pinto lembra que o apoio extraordinário que a CML disponibilizou para a área da Cultura foi dividido em duas linhas: uma linha de apoio a projectos, com uma dotação total de um milhão de euros, e uma linha de apoio de emergência, “de carácter mais social, para atender às necessidades de sobrevivência mais básicas dos artistas e das estruturas”, com uma dotação de 250 mil euros. À linha de apoio a projectos acabaram por ser destinados apenas 900 mil euros; os remanescentes cem mil euros serviram para reforçar a linha de apoio de emergência.
Àqueles que recusaram o apoio por considerarem inadequada a exigência de uma contrapartida em horas de trabalho, ou por considerarem o montante desadequado, será agora enviado um esclarecimento, explicando como se chegou ao valor proposto e dando conta da revogação da cláusula. “Não são muitos casos”, ressalva no entanto a vereadora.
"Dezenas de protestos"
À Lusa, o Sindicato dos Trabalhadores de Espectáculos, do Audiovisual e dos Músicos (Cena-STE) informou entretanto ter recebido “dezenas de queixas” sobre os apoios da CML ao sector da cultural e artístico. Entre esses protestos, estará o do produtor de cinema Pedro Fernandes Duarte, que na terça-feira acusou a autarquia de desrespeito pelos profissionais da Cultura, considerando “absurdo” que, na avaliação das candidaturas à linha de apoio a projectos, tenha sido seguido “apenas um critério cronológico” e não “um critério qualitativo”.
“Quais os critérios para esta decisão danosa para o município e para os seus munícipes, na medida em que só serão apoiadas as propostas elaboradas à pressa?”, questiona o produtor, lamentando que a autarquia tenha preterido “as propostas mais pensadas e perfeccionistas, a favor das propostas que foram elaboradas em duas semanas ou menos”.
“A decisão de considerar apenas as candidaturas entregues nos primeiros 15 dias é obviamente um enorme desrespeito pelo trabalho dos profissionais da Cultura de Lisboa”, lê-se ainda na carta que dirigiu ao presidente da Câmara, Fernando Medina, e à vereadora da Cultura. Acusando os serviços da autarquia de “absoluta incompetência” na administração do Fundo de Emergência Social (FES) na vertente Cultura, Pedro Fernandes Duarte reclama agora “uma reabertura do processo de avaliação e resposta às candidaturas ao mesmo”.
“Esta lógica de ‘o primeiro a chegar leva e o segundo talvez já não’ não é boa, independentemente de estar prevista ou não”, declarou também à Lusa Rui Galveias, membro da direcção do Cena-STE, defendendo que a atribuição de apoios não deveria ser "uma corrida”, em que saem beneficiados os que chegam primeiro, “porque souberam primeiro ou porque têm mais capacidade para lidar com as novas tecnologias”.
Tal como o PÚBLICO noticiou, a CML encerrou na terça-feira a fase de recepção de candidaturas à vertente Cultura do FES. Um aviso no site da autarquia dava conta de que as candidaturas apresentadas após 5 de Maio já não seriam consideradas, por ter sido atingido o valor total da verba disponível, 1,364 milhões de euros.
Em resposta ao protesto de Pedro Fernandes Duarte, Catarina Vaz Pinto lembra que a possibilidade de o montante disponível se esgotar antes do fim do prazo fixado estava explicitamente prevista no regulamento. “Informámos que as candidaturas estariam abertas a partir de 20 de Abril e que iriam ser analisadas à quinzena, até ao limite da dotação disponível ou até 30 de Junho. Rapidamente nos apercebemos, de facto, que dada a situação em que se encontra o sector o montante esgotaria logo na primeira quinzena. Mas o objectivo era fazer chegar o dinheiro rapidamente aos beneficiários”, frisa a vereadora.
A responsável pelo pelouro garante, no entanto, que o critério de avaliação “não foi só cronológico": “Tivemos em conta o mérito do projecto, o número de pessoas envolvidas, a aposta em formatos pequenos ou não convencionais e o trabalho em parceria, por exemplo.”
Interrogado sobre o papel do poder local na resposta à crise provocada no sector artístico pela covid-19, o dirigente do Cena-STE diz que os apoios das câmaras municipais são bem-vindos, mas não substituem o papel do Governo, “que não está a fazer aquilo que deve, que é criar medidas de emergência para proteger os trabalhadores”. E alerta para o risco de, ao tentarem substituir-se ao Estado central, as autarquias poderem estar a criar situações de assimetria regional e a agravar injustiças no acesso ao financiamento. com Lusa