App para ajudar a encontrar crianças desaparecidas está a ser desenvolvida há sete anos
A aplicação que permite a participação de um desaparecimento de forma quase imediata é uma das seis vencedoras do programa Mais Ajuda, mas o projecto está a ser desenvolvido há sete anos.
E se fosse possível carregar num botão no telemóvel para avisar automaticamente a GNR cada vez que uma criança ou adulto dependente de outrem desaparece, com informação sobre o que vestia, qual a sua aparência física e quais as coordenadas onde foi visto pela última vez? A ideia é uma das vencedoras do programa Mais Ajuda — uma iniciativa do Lidl, em parceria com o grupo Renascença e a aceleradora de start-ups Beta-i — que vai dar 150 mil euros a seis projectos de intervenção e impacto social.
Chega numa altura em que Missing Children Europe (MCE) — a federação europeia para crianças desaparecidas e exploradas sexualmente — alerta que a pandemia de covid-19 aumenta o risco de desaparecimentos de menores, com a maior parte dos casos a incluir fugas (55%) seguido de raptos (23%). Mas o projecto não é recente.
Foi em 2013 que a Associação Portuguesa de Crianças Desaparecidas (APCD) primeiro apresentou uma aplicação móvel para notificar rapidamente as autoridades sobre o desaparecimento de crianças ao permitir uma ligação directa com a equipa responsável da GNR, bem como apoio psicológico por parte da APCD. Com o passar dos anos, a ideia passou a considerar também adultos dependentes, tais como pessoas com deficiência, e uma ferramenta adicional de acompanhamento voluntário por GPS. Mas sete anos mais tarde o projecto — conhecido por Miúdos e Graúdos no Radar — continua por acabar.
“Tem avançado muito desfasadamente porque andamos desde 2013 a tentar encontrar ajuda externa, algo essencial para desenvolver um projecto tecnológico desta envergadura”, explica ao PÚBLICO a advogada Patrícia Cipriano, presidente da APCD e especialista em Direito da Família e menores. “Aquilo que queremos é facilitar e acelerar o preenchimento de um relatório de desaparecimento, tal como é feito no posto da GNR, através de um aparelho simples que crianças e adultos usam diariamente”, continua. “Parece-me paradoxal a falta de apoio. Fala-se tanto em inovação, mas as crianças desaparecidas têm tido muito pouca atenção por parte do Estado e somos obrigados a recorrer a iniciativas privadas.”
A primeira versão teve o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Com o prémio do Mais Ajuda, a APCD tem mais 22.500 euros para desenvolver a aplicação, com protótipos de apps iOS e Android já desenvolvidos pela agência digital portuguesa Diamond by Bold.
A versão base do Miúdos e Graúdos no Radar deve permitir a pessoas responsáveis por crianças ou adultos dependentes criar perfis (com o nome, altura, idade, peso, fotografia) que possam enviar rapidamente ao departamento de operações especiais da GNR. “Quando as pessoas vão a uma esquadra para fazer uma participação sobre um desaparecimento têm de ter todas estas informações, e muitas vezes não têm”, justifica Patrícia Cipriano. “As pessoas estão angustiadas e por vezes nem conseguem encontrar uma fotografia.”
O adulto também pode enviar a sua localização, dado que muitos desaparecimentos ocorrem em espaços como um passeio no parque ou centro comercial. Antes de o alerta chegar à GNR, é feita uma triagem rápida pela equipa da APCD, para evitar que pessoas mais sensíveis estejam a disparar o alarme precocemente e disponibilizar apoio psicológico quando necessário.
“Se avançar, será mais um meio que a GNR tem para fazer o seu trabalho”, reconhece o tenente-coronel João Nascimento Nunes, chefe de divisão de sistemas de informação da GNR. “Não precisamos da aplicação para trabalhar, mas pode ser um mecanismo útil de alerta para desaparecimentos”.
Pagar para acompanhar por GPS
Além da versão gratuita, a APCD também quer disponibilizar uma versão paga da aplicação pensada para encarregados de educação interessados no Acompanha-me. Trata-se de uma funcionalidade adicional, sujeito ao pagamento de cinco euros por mês, que quando activada envia as coordenadas do telemóvel da criança de cinco em cinco minutos através de dados móveis. Para assegurar a privacidade e segurança, os dados são todos encriptados e apenas são partilhados com a GNR em caso de emergência.
“Imagine que uma criança vai para um acampamento de escuteiros e está perdida. Ao accionar o Acompanha-me, o encarregado de educação pode ver onde está e pedir ajuda”, sugere Patrícia Cipriano. Embora a funcionalidade dependa de Internet para funcionar, o GPS é capaz de continuar a recolher a localização da criança e enviar a localização mais recente quando conseguir acesso à rede.
A directora da APCD ressalva, no entanto, que a ferramenta só funciona se existir consentimento da criança. “Os pais não têm sempre a opção de saber onde a criança está por motivos de salvaguarda do seu direito à privacidade”, frisa. “Esta aplicação foi criada para pessoas e crianças vulneráveis. Se fosse possível accionar o Acompanha-me sem qualquer tipo de autorização, isso poderia gerar abusos”, continua Cipriano. “Veja-se o caso de um marido que instalava a aplicação no telemóvel da mulher para vigilância não consentida.”
A Comissão Nacional de Protecção de Dados confirma ao PÚBLICO que reuniu com a APCD a propósito da versão de 2013 da aplicação, mas não está a trabalhar activamente no projecto, nem se pronunciou sobre o uso de dados de crianças. “Neste momento, com o Regulamento Geral para a Protecção de Dados [RGPD], deixou de haver autorizações prévias da CNPD”, esclarece Clara Guerra, porta-voz da CNPD, lembrando que o tratamento de dados de crianças requer especial atenção.
“[As crianças] podem estar menos cientes dos riscos, consequências e garantias em questão e dos seus direitos relacionados com o tratamento dos dados pessoas”, lê-se no RGPD, em vigor desde Maio de 2018 na União Europeia. Como tal, qualquer informação e comunicação deverá estar redigida numa linguagem clara e simples que a criança compreenda facilmente.
“Nem sempre é fácil encontrar um equilíbrio entre o dever de supervisão e o respeito pela privacidade”, nota Sandra Gil, psicóloga da APCD, especializada em psicologia forense e sexologia clínica, que acompanha as famílias que reportam desaparecimentos. Para a profissional, manter uma comunicação aberta é fundamental. “Mais do que ter uma postura crítica e proibitiva é importante falar com sinceridade e abertamente sobre os temas e explicar que para a sua segurança é necessário alguma monitorização, nomeadamente na Internet.”
A APCD lembra, no entanto, que o Acompanha-me não é o foco da aplicação Miúdos e Graúdos no Radar — o principal objectivo é permitir a existência de uma base de dados actualizada que possa ser enviada à GNR em caso de emergência.
“Havendo rapidez no alerta, as buscas iniciam-se sempre mais rápido do que sem a aplicação em virtude da passagem imediata de informação sobre o desaparecido para o Comando de Operações”, resume Patrícia Cipriano. “É uma ferramenta para acelerar a investigação.”
Os outros cinco vencedores do programa Mais Ajuda, do Lidl, incluem o projecto Aprender Mais, da Acreditar – a Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro, que tem o objectivo de garantir o processo educativo de crianças diagnosticadas com cancro; a Speak, que é uma plataforma online para juntar pessoas migrantes, refugiadas e locais a viver na mesma cidade; e um projecto para promover as competências sociais e educativas de crianças em zonas rurais e isoladas do concelho da Covilhã.
As startups The Inventors e Pixelability também estão entre os vencedores – a primeira está a desenvolver programas educativos para estimular o gosto pela tecnologia nos mais novos, e a segunda está a desenvolver ferramentas digitais para terapia da fala.