Estaremos perante uma nova realidade?
Permitam-me ensaiar a presciência que este tempo de indeterminações será o momento de decidir se nos disponibilizamos a ensaiar a construção de um novo paradigma.
Todas as gerações procuram identificar nos seus tempos áureos um momento de alteração de paradigma numa atitude imensamente humana de se atribuir relevância histórica. No entanto, sabemo-lo, serão as gerações vindouras e a forma como for contada a história que avaliarão essa condição de mudança.
Hoje repete-se mais recorrentemente que a pandemia global nos coloca perante um novo paradigma. Entendamo-nos, primeiro, quanto ao “novo”.
É certo que muitos foram os que avisaram dos perigos de que a forma como se estava a consumir os recursos naturais aprofundava desigualdades, destruía actividades produtivas ou como as formas de governo capitalista assumiam uma tendência cada vez mais autoritária e desqualificadora da cultura, da ciência e do conhecimento. No plano nacional, fiz parte dos muitos que alertaram para os perigos da turistificação e decorrente monofuncionalização das nossas cidades, cujo reflexo é hoje bem patente numa Baixa de Lisboa nua de turistas e esvaziada de sentido. Hotéis de charme, pastéis de bacalhau com queijo ou os mais caros pastéis de nata não serão suficientemente mobilizadores para quem habita a cidade e as lojas de excepção que pontuavam a Baixa foram sendo despejadas ou descaracterizadas. Ao invés, outras zonas da cidade onde ainda há moradores, e não apenas actividades para servir o turismo, começam lentamente a retomar a sua vida, havendo casos em que se conseguiram construir importantes redes de apoio popular de muita relevância nos dias de confinamento.
Mas se as consequências deste “novo” eram expectáveis – somente visões deslumbradas, gananciosas e pouco iluminadas não as conseguiam ver –, a forma que tomou esta nova realidade não o era. Mesmo visões catastrofistas não conseguiriam imaginar uma realidade em que 153 países fechavam as suas escolas colocando 98,6% da população estudantil em casa por um período médio de quatro meses, de acordo com os últimos dados publicados pela UNICEF. Seria difícil imaginar uma catástrofe mundial que pudesse provocar tamanho impacto global na vida corrente.
Parece certo que, até à oficialização de uma vacina ou de uma cura, estamos perante uma nova realidade com um conjunto de indeterminações com que estamos pouco habituados a viver. Permitam-me ensaiar a presciência que este tempo de indeterminações será o momento de decidir se nos disponibilizamos a ensaiar a construção de um novo paradigma.
Os obstáculos a essa construção já são bem visíveis e ganham expressão sob duas formas. Em primeiro lugar temos o medo, e todos os que se deixarão consumir e aprisionar pelas suas diferentes expressões zurzindo contra os que vão à praia, temendo quem circula na rua, julgando negativamente quem procura normalizar a vida exercendo o seu justíssimo direito ao lazer. Em segundo lugar, temos as elites financeiras e os seus representantes, que se dedicarão a tentar manter ou aumentar a sua riqueza e influência. Ninguém imaginará que, nestes dois meses de confinamento, os sectores imobiliário e financeiro do país tenham evoluído na sua cultura ou consciência cívica, social ou ambiental que lhes permita liderar ou ser actores de uma recuperação económica sustentável. Ninguém imaginará que o ministro Pedro Siza Vieira, depois de promover um sistema de lay-off simplificado mais limitativo no acesso a micro-empresas do que a grandes empresas, não irá deixar de estender a mão do Estado à Associação da Hotelaria de Portugal, presidida por Cristina Siza Vieira, colocando o erário público a financiar sem reservas este sector a partir da narrativa de que, num futuro pós-vacina, voltará a ser a galinha dos ovos de ouro da recuperação económica.
Este não é um tempo de oportunidades ou de nos reinventarmos, como se vai repetindo acriticamente numa formulação que remete para respostas isoladas que nos conduzirão a novas formas de individualismo e à responsabilização de cada um pela sua miséria, mas um tempo de indeterminação susceptível de criar vontade colectiva de construção de uma nova realidade, o almejado novo paradigma. Para tal suceder é fundamental trabalharmos na valorização do comum, onde se compreende a importância do Estado e dos serviços públicos como algo que nos pertence e que está ao serviço de todos, e dando prioridade a lógicas de Parcerias Público-Comum – onde se incluem parcerias entre o Estado e associações, cooperativas ou todos os sectores de actividade não-especulativos – como estratégicas para o progresso, para a produção e para o desenvolvimento de base local.
Foi esta energia colectiva que fez com que as pessoas iniciassem o confinamento antes de o Governo o decretar, mesmo quando o Conselho Nacional de Saúde Pública insistia em manter as escolas abertas. Mas também é esta energia colectiva que nos viu sair à rua em actos de solidariedade, que viu emanar desta nova realidade inúmeros colectivos que, pelo país fora, se organizaram para distribuir compras, produtos alimentares ou comida, chegando tantas vezes onde o Estado não chega, e suprindo a desistência de algumas instituições sobejamente conhecidas (e financiadas!), tantas vezes glorificadas de forma acrítica em tempos de “normalidade”.
É na criação deste poder colectivo, crítico e emancipador, que poderá estar a alavanca para um novo paradigma, certamente mais sustentável e em que a esmagadora maioria viverá melhor.