A ampliação da Ordem dos Arquitectos é um projecto para a Lisboa pós-pandemia
Arquitecto vencedor do concurso diz que é preciso pensar “num futuro pós-covid para a cidade” porque o turismo esvaziou o centro e “a prova de que o caminho foi errado está à vista”.
Rua a rua, edifício a edifício, o Cais do Sodré foi mudando nos últimos anos ao ritmo do turismo, aliando a renovação dos prédios à renovação das caras, mas uma esquina permaneceu inalterada e degradada, em contraponto à pintura de fresco que surgia à sua volta. As traseiras da Ordem dos Arquitectos continuam a sê-lo – umas traseiras –, mas o projecto que acaba de ser escolhido para ali quer acabar com essa condição menor e dar ao bairro um vislumbre do que pode ser a arquitectura e a cidade no pós-pandemia.
A Ordem anunciou na sexta-feira o resultado do concurso para a ampliação da sua sede e a proposta vencedora, do arquitecto Luís Pedro Pinto, rejeita abertamente a lavagem de cara que, diz o autor, tem caracterizado a reabilitação urbana lisboeta. “Interessa-me muito manter a história daquelas paredes. Gosto dos cartazes, dos grafites. Assistimos ali à volta a um discurso muito contrário a este, o do rigor higienista, o da limpeza.”
O edifício fica nas traseiras do Mercado da Ribeira, na esquina entre a Rua da Ribeira Nova e a Praça Dom Luís, e está em avançado estado de degradação. Quando a Ordem lançou o concurso, há um ano, era ponto assente que o projecto para ali não poderia ser totalmente novo – pelo menos os arcos das portas teriam de ser mantidos. A partir daí era uma questão de cumprir o programa: uma cafetaria/restaurante, salas para formações e uma sala polivalente. Houve 66 propostas a concurso.
Na sua memória descritiva, Luís Pedro Pinto mostrou ao que vinha: “À sua volta tem-se assistido a uma rápida e expressiva requalificação do edificado: os prédios passaram a ter ‘cara lavada’. Hoje são hotéis e apartamentos de ‘luxo’, o Mercado da Ribeira tornou-se no food court de uma revista lifestyle e as pessoas deram lugar a outras pessoas sentadas em tuk-tuks. Uma certa cultura popular e underground que sempre povoou o Cais do Sodré foi-se rapidamente afastando…”
O projecto consiste na construção de um corpo de betão claro e curvilíneo, de forma triangular. “Havia no programa a ideia de um mini-centro de cultura e este projecto tenta maximizar isso ao máximo. Há no desenho a ideia de que o edifício transpareça para fora o que é por dentro”, diz o arquitecto ao PÚBLICO.
O júri, presidido por Egas José Vieira (que, com Manuel Graça Dias, reabilitou os Banhos de São Paulo onde funciona a sede da Ordem), fez-lhe muitos elogios, destacando a “sua coesão, coerência e imagem unitária”, a “sua singularidade” e a sua “informal leveza”. “É a proposta que melhor se adequa ao tecido urbano”, escreveram os jurados, sublinhando o “significativo contributo para a valorização arquitectónica, urbanística e ambiental do local”.
“A encomenda não resolve a cidade”
Luís Pedro Pinto trabalha hoje em nome próprio, mas durante década e meia fez parte de um atelier com sede no Cais do Sodré, o que lhe permitiu testemunhar as muitas mudanças por que a zona passou. “Desde 2000 até 2015 assisti a um processo muito profundo. Era uma zona muito degradada que tinha uma cultura própria. Hoje, Maio de 2020, no pós-covid, passamos lá e não vemos ninguém”, reflecte.
O arquitecto não responsabiliza os seus pares – afinal, a crise na classe foi grande e o turismo rendeu muitas encomendas. Exigia era mais aos poderes públicos. “Se estamos à espera de que a encomenda resolva a cidade, não vai resolver. A encomenda resolve a encomenda. O que é preciso é perceber como é que a encomenda pode servir a cidade. A cidade é muito importante e a prova de que o caminho foi errado está à vista no pós-covid. Tem de se adivinhar um futuro pós-covid para a cidade.”
O seu projecto, argumenta, aponta pistas. Obrigado a respeitar a pré-existência, que era “um ponto-chave” do programa do concurso, Luís Pinto diz ter ido para além disso, procurando integrar os elementos novos e velhos sem uma ruptura acentuada. “É um projecto que quer contrariar a ‘fachadização’”, afirma. Isso consegue-se com recurso ao betão, que “constrói todo o edifício, interiores e exteriores”. O material deverá ser “um creme o mais claro possível, um pouco como o lioz da cidade”, diz.
Outro ponto que também destaca – e que salta à vista nas perspectivas 3D elaboradas pelo estúdio Lamb 3D – é a manutenção das camadas nas paredes já existentes, com os seus cartazes sobrepostos e as pichagens. Talvez esteja a sonhar demasiado, admite, mas causa-lhe comichão a ideia de um edifício limpo, de paredes lisas.
Com a Ordem dos Arquitectos a meio de um processo eleitoral, cujo desfecho está marcado para dentro de um mês, Luís Pedro Pinto espera que o projecto se torne “um desígnio da própria Ordem” e não seja encarado como “o projecto da direcção cessante”.
O júri decidiu atribuir o segundo lugar da competição ao consórcio Pedro Matos Gameiro e Bugio, que propunha uma abertura para a Travessa do Carvalho que a proposta de Luís Pedro Pinto não contempla, e o terceiro lugar a Samuel Dias Pereira, que apostava em dar “uma visibilidade e uma identidade clara” ao edifício.
Não foram atribuídas menções honrosas porque, explicam os jurados no relatório final, apesar do “expressivo número de propostas a concurso”, apenas 20% tiveram uma pontuação final acima dos 14 valores e mais de 10% das propostas tiveram menos de 10 valores, “reveladoras de uma manifesta falta de entendimento sobre os valores urbanos, arquitectónicos e patrimoniais em presença.”
“Nenhuma proposta classificada abaixo dos três primeiros lugares reunia aspectos particularmente meritórios e passíveis de serem mencionados”, conclui o júri.