Covid-19
Mariano Pascual ilustrou a “desorganização dos nossos pensamentos” durante o isolamento
Uma figura com traços indistinguíveis contempla o pequeno pedaço do mundo que consegue avistar a partir da janela do quarto do seu apartamento. Não é o escape perfeito, mas, e por falta de melhor opção, é uma vista mais simpática que a do computador cheio de post-its e lembretes no escritório – que, com os cigarros, a garrafa de vinho e os pacotes de batatas fritas, é também espaço de (apressadas) refeições. E por falar em refeições, quem é que deixou um prato de papel higiénico na cozinha? Entre a ironia e a introspecção, Mariano Pascual criou a série de ilustrações Surreal Lockdown para reflectir sobre aquilo que sentiu durante o seu isolamento – e “a ideia de que estamos fora de nós mesmos”.
O artista argentino, que se mudou para a cidade de Barcelona há cerca de nove anos, vive com o namorado, o que, conta ao P3, “definitivamente ajudou a combater” as saudades dos amigos e das rotinas. O casal saía do apartamento apenas para, uma ou duas vezes por semana, fazer as habituais compras no supermercado. E deparava-se com uma “sensação muito estranha e contraditória”, assinala Mariano. “Como não tinham quase ninguém, as ruas pareciam limpas e quase rejuvenescidas, mas, ao mesmo tempo, suspeitas e foges de todas as pessoas com quem te cruzas.”
Essas contradições surgem em Surreal Lockdown, cujas imagens de quartos desarrumados – com “cores quentes e acolhedoras” no meio de “um imaginário que é repugnante” – ou desordem na casa apontam para a “desorganização dos nossos pensamentos”. Estes cenários fictícios, frisa o autor, podiam ser “de qualquer casa” – ou, por extensão, “de qualquer mente” – em “qualquer sítio do mundo”. “Continuo bastante ocupado, e, criativamente, isso é muito bom, porque é da maneira que consigo alguma abstracção, mas, por outro lado, também sinto que está tudo virado do avesso aqui dentro”, confessa Mariano. “Imagino que isso seja comum a quase toda a gente.”
Os títulos que acompanham as ilustrações também “brincam com alguns dos ‘vícios’ e maus hábitos que estamos a ganhar nesta época” de distanciamento social (o home office, por exemplo, está “sempre aberto para serviço”). Por outro lado, através da representação do vaso com uma máscara protectora e ramos de flores mortas, o designer gráfico procurou pensar sobre o facto de “os nossos cuidados terem mudado completamente de foco”. “As coisas que importam para nós são diferentes agora”, conclui o artista. “O que é compreensível, mas tenho medo que, enquanto tentamos fugir do vírus, nos esqueçamos de cultivar e olhar pelas outras partes das nossas vidas.”