Para não voltar à “normalidade”, uma nova ecologia
Para não voltar a uma “normalidade” que se subjuga a meros ditames político-económicos, agravando as desigualdades e destruindo os ecossistemas terrestres, temos de nos empenhar numa nova ecologia, abrangente e humana, cuidando em comunidade do nosso planeta.
Na situação atual, em que estamos como suspensos perante as exigências que a pandemia da covid-19 nos impõe, encontramo-nos igualmente num ponto de clivagem que nos permite repensar convicções e certezas que, para muitos, ainda há pouco pareciam válidas e inalteráveis.
Não podemos aceitar, enquanto cidadãos, ficar enredados na narrativa dominante e unidimensional da inexistência de alternativas. É nestes momentos de crise que se abrem brechas que temos de aproveitar para romper com um discurso público que coloca “a economia” acima da dignidade humana e do equilíbrio dos ecossistemas e da biodiversidade, indissociáveis da nossa existência enquanto espécie. Devemos, por isso, ser ativos e criativos na construção de uma comunidade solidária e livre, que seja ecológica num sentido global e inclusivo, guardiã dos valores da paz e da liberdade.
Desejamos contribuir para abrir um espaço para a reflexão, a mobilização e a ação, numa tentativa de formular as perguntas certas e encontrar respostas para a atual situação mundial, refém de uma globalização cada vez mais catastrófica e desumana. Parece-nos imprescindível (re)criar laços transgeracionais e transculturais que permitam construir uma nova vivência comunitária, social e política, quer à escala local, quer à escala global.
A crise que atravessamos em resultado da pandemia criou uma condição permanente de exceção, na forma jurídica de estado de emergência ou de calamidade, com diferentes graus de severidade e expansão, que acaba por suspender ou restringir o âmbito da liberdade de expressão, de reunião e de intervenção no espaço público. Ao mesmo tempo, os sentimentos de medo e insegurança suscitam pressões paralelas, facilmente aproveitadas por tendências políticas incompatíveis com valores democráticos. Quando grande parte do mundo é governado por regimes ou dirigentes autoritários, podemos observar que esta situação se tende a agravar em países como a China, a Rússia, a Turquia, os Estados Unidos e o Brasil, mesmo quando se trata formalmente de democracias. E ameaça dividir o espaço europeu entre países com governos autocráticos e democráticos, sempre sob ameaça do fortalecimento de movimentos populistas e até neofascistas.
Percebemos que a mudança do modelo de desenvolvimento se tornou imperiosa. A “normalidade” do passado é insustentável. A mudança não se pode deter em fronteiras geográficas, nem políticas, nem de classe, nem ideológicas, nem disciplinares. Entendemos que é necessário contrapor uma nova ecologia que não seja apenas ambiental, mas que inclua a reconstrução das relações humanas, sociais e do pensamento. Reclamamos um espaço público a que tenha acesso a variedade dos grupos e sujeitos que representam a diversidade das sociedades humanas.
Queremos uma sociedade onde os valores do humanismo, a promoção da qualidade de vida, a valorização dos mais desfavorecidos e a defesa do planeta e da sua biodiversidade estejam no centro da política. E que rejeite que a obsessão por um crescimento económico infinito e por umas décimas a mais ou a menos de qualquer grandeza económica tome conta do debate e inviabilize as melhores opções. Ter contas certas significa apenas isso, não pode servir para sacrificar princípios e pessoas numa voragem em que uns poucos ganham e a grande maioria perde.
Contra um imaginário da vida e da natureza pensado como concorrência e luta pela sobrevivência, vimos dizer que, a pensar ecologicamente, a natureza é coexistência e diversidade. Uma sociedade ecológica terá necessariamente de encorajar a capacidade de discordar, de aguentar o dissenso, a contradição e o diferente, para não cair na armadilha de um consenso que infantiliza e de uma uniformidade que oprime. Precisamos de cultivar a singularidade da subjetividade humana e recusar lógicas de supremacia e dominação socioeconómica, técnica e cultural.
Para não voltar a uma “normalidade” que se subjuga a meros ditames político-económicos, agravando as desigualdades e destruindo os ecossistemas terrestres, temos de nos empenhar numa nova ecologia, abrangente e humana, cuidando em comunidade do nosso planeta.
Por uma ecologia planetária, social e comunitária.
André Barata, filósofo
Hans Eickhoff, médico
Jorge Gravanita, psicólogo
Maria Belo, psicanalista
Ricardo Sá Fernandes, advogado
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico