Tatuadores querem voltar ao trabalho: “Sempre lidámos com contaminação cruzada”
Na Madeira já se tatua, mas no continente ainda não há data à vista e os apoios da Segurança Social são “insuficientes”. O sector quer voltar à actividade, justificando ser dos que melhor preparado está para enfrentar a pandemia.
Todos os dias, antes do início da pandemia, no estúdio de tatuagens de Paulo Rui e Taciana Santos, antes de se gravar uma imagem ou de se fazer um piercing num cliente, os procedimentos de higiene e segurança eram sempre os mesmos. O proprietário explica: “A partir do momento em que se começa a mexer em algo que tenha a ver com o processo de tatuar as luvas já estão calçadas. Após montada a estação para dar início ao primeiro contorno troca-se outra vez de luvas. Antes disso, a marquesa onde o tatuado se instala já está desinfectada e protegida com uma capa descartável. Depois de ser colocado o stencil com os contornos no corpo do cliente volta-se a trocar de luvas para pegar na máquina, que tem agulhas novas e também está protegida. No final, tudo é separado em contentores de resíduos próprios para diferentes tipos de desperdícios. O material é praticamente todo descartável e uma pequena parte que não é é esterilizado”.
É assim na HeartGallery Tattoo Piercing, no Porto, e em todos os estúdios de norte a sul do país. Mas, nesta fase de desconfinamento, este sector continua parado e sem data prevista para voltar à actividade. Muitos deles sem apoios da Segurança Social (SS) ou com subsídios abaixo do expectável para manter o negócio aberto ou para garantir as despesas pessoais, tatuadores de todo o país continuam a ter de pagar as contas. Por isso, reivindicam o direito a voltar a trabalhar. Justificam isso com os métodos que sempre adoptaram para poder manter a porta aberta – acreditam ser dos sectores mais habituados a trabalhar com cuidados de higiene e dos mais bem preparados no que toca a contaminação cruzada. Entretanto, na Madeira os estúdios já abriram, mas, no Continente ainda não há data para os tatuadores poderem voltar à actividade, o que já deu a algumas vigílias em protesto.
“Já podíamos ter aberto ontem”
Passaram dois meses e meio desde que Paulo Rui e Taciana Santos fecharam as portas à espera de receber ordens para voltar a abrir. O último dia de trabalho foi a 14 de Março. Mas no dia anterior já tinham cancelado, por iniciativa própria, o flash day por uma questão de segurança, contrariando uma tradição de todas as sextas-feiras 13 que reúne dezenas de pessoas. Porém, desde essa altura que o estúdio está pronto para reabrir – desta vez, na semana passada, abriram-no só ao PÚBLICO.
“Já podíamos ter aberto ao público ontem”, afirma o tatuador. Só que não o fizeram, nem sabem quando o vão fazer. Ao contrário do que foi acontecendo com outros negócios de rua o deles continua com data de abertura por definir. “Seria importante ter uma previsão para termos alguma segurança”, acrescenta.
Ficam à espera de entender o porquê de se manterem fechados quando os barbeiros e cabeleireiros já abriram, sendo que durante muito tempo, contra a vontade dos tatuadores, foi o sector ao qual estiveram agregados. Agora, nesta fase de desconfinamento aparecem agregados aos spas e termas, que continuam também sem saber quando regressam à actividade. Não percebem o porquê de terem sido colocados nessa categoria. A nível de cuidados de higiene, proximidade com o cliente e ao nível das contaminações cruzadas consideram-se mais próximos dos dentistas, que já abriram portas. “No caso de um dentista o cliente até não pode estar de máscara. Os nossos clientes podem”, diz Taciana.
Apoio insuficiente
Entretanto, já passaram dois meses e meio e as contas continuam a chegar: “Renda, água, luz, Segurança Social, taxa de recolha de resíduos. Mas continuamos sem trabalhar”. E o subsídio que recebem da SS consideram muito abaixo do necessário para aguentarem as despesas. “Não conhecemos ninguém próximo a quem aconteceu, mas sabemos que há estúdios a fechar”, diz Taciana.
Noventa euros foi quanto Kisto, da Spider Tattoos - estúdio de tatuagens mais antigo do Porto –, recebeu de apoio da SS, desde que o estúdio fechou temporariamente. Este é um valor que o tatuador diz parecer “aleatório”, tendo em conta a diferença de valores que ele e os seus colegas de loja estão a receber: “um recebeu 60 euros e outro cerca de 200 euros. É inexplicável”.
Outro facto que lhe parece igualmente aleatório é a associação aos spas e termas. O tatuador também faz uma comparação com o sector dos dentistas, a funcionar desde o início de Maio, que diz ter adoptado medidas “muito semelhantes” às que já eram prática normal nos estúdios de tatuagens antes da pandemia, como é o caso de todas as superfícies de contacto, tanto do tatuador, como do cliente, haja ou não sangue, terem de ser isoladas. “Para nós estas coisas são normalíssimas”, sublinha.
Para voltar a abrir não considera problema nenhum ter de ceder a algumas alterações. Mas sublinha que, na verdade, não teriam de existir muitas, por força da rotina habitual já implementada na área em que se move. “Atender clientes só com marcação sempre foi normal para nós”, afirma, salientando não ser também muito habitual existir grandes concentrações de pessoas dentro do espaço.
Madeira já tatua
Na Madeira, desde 10 de Maio que já há decreto para as regras de funcionamento dos estúdios de tatuagem. Ao contrário do continente, os estúdios já reabriram. Kisto diz que não era preciso muito mais do que o que está expresso nesse decreto. “Nós já fazíamos tudo o que lá está. Das poucas alterações que existem são o uso obrigatório de protecções para os pés e as toucas”, afirma.
Há cerca de 600 tatuadores registados na SS, mas os números reais de profissionais da actividade são muito diferentes. Kisto explica que só há poucos anos foi criada uma designação para a sua actividade. Muitos continuam registados com “CAE diferente”. Diz que um levantamento feito recentemente, a partir das vendas dos fornecedores, estima-se existirem “aproximadamente 5 mil tatuadores”.
À espera continuam também de um pedido de resposta que o Bloco de Esquerda disse estar para levar à Assembleia da República. Entretanto, anseia pelo regresso à actividade: “Não há ninguém mais preparado do que nós a trabalhar com contaminação cruzada. A nossa prática comum é partir do princípio que nós ou qualquer cliente está sempre infectado com todas as doenças imagináveis”.