Estudos começam a mostrar que pode ser prejudicial tratar a covid-19 com hidroxicloroquina

Equipa de reumatologistas do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, diz não haver provas de que a hidroxicloroquina sirva para tratar ou prevenir sintomas da covid-19, numa altura em que um estudo norte-americano indica até que doentes graves tratados com esse fármaco correm maior risco de ter complicações cardíacas e morrer.

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Há doentes que tomam cronicamente hidroxicloroquina e que ficaram na mesma infectados rui gaudencio

Um grupo de reumatologistas do Serviço de Reumatologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, defende que não há qualquer prova de que a hidroxicloroquina diminui ou previne o aparecimento de sintomas da covid-19, uma vez que há doentes que tomam cronicamente o medicamento e que foram infectados na mesma com o vírus SARS-CoV-2.

“Havia alguma esperança de que doentes que já estivessem a fazer hidroxicloroquina por causa das suas doenças de base – nomeadamente doenças reumáticas, como o lúpus – não fossem infectados”, explicou ao PÚBLICO João Eurico da Fonseca, director do Serviço de Reumatologia do Hospital de Santa Maria e um dos autores de um artigo publicado na revista Annals of the Rheumatic Diseases. Este pressuposto constava de artigos publicados por outros autores na mesma revista médica, nos quais diziam não haver “relatos de doentes expostos cronicamente a estes medicamentos que tivessem sido infectados”.

“O que nós documentamos é que tínhamos acabado de testemunhar que isso não era verdade porque dois dos nossos doentes tinham sido contagiados, apesar de estarem a fazer terapêutica [com hidroxicloroquina] há muito tempo”, disse João Eurico Fonseca, que assina o artigo com Vasco C. Romão e Ana Rita Cruz Machado.

Além dos dois casos em Portugal, os investigadores também mencionam um registo mundial de pessoas com doenças reumáticas infectadas pelo novo coronavírus, que foi lançado recentemente pela Aliança Global de Reumatologia, uma federação internacional centrada na resposta dos reumatologistas à pandemia. Os dados recolhidos inicialmente davam conta de 19 doentes com lúpus eritematoso sistémico (uma doença auto-imune que requer a toma de hidroxicloroquina) tinham sido infectados com covid-19.

Para João Eurico da Fonseca, estas provas são importantes “para evitar excessos de entusiasmo” que “elevem o risco de contaminação” e garantir que quem precisa realmente da medicação consegue ter acesso a ela, algo que esteve em risco devido ao incentivo, por parte de alguns países, para a toma deste medicamento como forma de combater a pandemia.

Donald Trump tem sido o maior defensor da utilização da hidroxicloroquina, sem que qualquer ensaio clínico fundamentasse a sua posição e indo mesmo contra as indicações de membros da sua Administração e de instituições médicas internacionais. O Presidente dos Estados Unidos anunciou até, na segunda-feira, que começou há semanas a tomar o medicamento como medida profiláctica.

O Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, é outro defensor da hidroxicloroquina para o combate à covid-19. Apesar de reconhecer que não sabe a eficácia do tratamento, Bolsonaro defende há semanas a utilização do fármaco, e esta semana o Governo brasileiro divulgou o novo protocolo médico que permite aos médicos a prescrição do medicamento a doentes com sintomas leves.

Inicialmente utilizada contra a malária, a hidroxicloroquina tem sido usada também para tratar doenças auto-imunes, desde que se “verificou que estabilizava o sistema imunitário” dos doentes sem causar imunodeficiência, explica João Eurico da Fonseca. Esta “justa medida da actividade do sistema imunitário” revelou-se “muito importante para os doentes com lúpus”: todos os “que não tenham contra-indicações ou que não desenvolvam toxicidade” tomam a medicação “potencialmente toda a vida”. Outras doenças “próximas do lúpus”, como a artrite reumatóide, também têm sido tratadas com hidroxicloroquina e com bons resultados.

Efeitos adversos nos infectados inviabilizam uso da hidroxicloroquina

A capacidade de “acalmar” o sistema imunitário levou a comunidade científica a ter em conta o fármaco para “hipoteticamente tratar os doentes com a covid-19”, uma vez que uma parte do problema é “um excesso de resposta do sistema imunitário activado pelo vírus”.

“Adicionalmente, a hidroxicloroquina, como todos os medicamentos, não é isenta de efeitos adversos, e podemos ter um problema sério ao estarmos a expor pessoas que não têm nada de tomar hidroxicloroquina e que tenham como único ‘ganho’ efeitos adversos”, acrescentou o reumatologista.

 Um artigo científico publicado esta sexta-feira pela revista médica The Lancet vem comprovar as declarações de João Eurico da Fonseca e enfraquecer a posição dos defensores da terapêutica para doentes com covid-19. O estudo sugere que o tratamento com cloroquina, hidroxicloroquina ou a combinação de um destes dois medicamentos com um antibiótico não apresenta qualquer benefício para infectados com covid-19, aumentando até o risco de problemas cardíacos graves e a taxa de letalidade.

Num universo de cerca de 96 mil infectados internados em 671 hospitais por todo o mundo, quase 15 mil foram tratados com um de quatro tratamentos envolvendo cloroquina ou hidroxicloroquina. Cerca de um em cada seis doentes tratados com um dos dois fármacos morreu, uma taxa de letalidade superior à verificada no grupo de controlo: nos restantes 85 mil infectados, um em cada 11 doentes faleceu.

Os tratamentos que combinavam os medicamentos com um antibiótico ainda apresentaram uma taxa de letalidade superior: cerca de um em cada cinco doentes tratados com cloroquina e um antibiótico e quase um em cada quatro tratados com hidroxicloroquina e um antibiótico morreu.

No estudo na The Lancet – ​que tem como principal autor Mandeep R. Mehra, director executivo do Centro Avançado para as Doenças Cardíacas do Brigham and Women’s Hospital, em Boston – ​​recomenda-se que estes medicamentos não sejam utilizados para tratar doentes covid-19 fora de ensaios clínicos (em pessoas), sendo necessário confirmar os resultados com ensaios aleatórios. Para já, são essas provas: “Os resultados permitem concluir que a probabilidade de a cloroquina e a hidroxicloroquina ajudarem a tratar a covid-19 é muito baixa.”

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