Neste embelezado e doméstico gulag a que os actores, bailarinos, músicos e técnicos são cordialmente circunscritos, esconde-se sub-repticiamente, e para além das pandemias, um modelo económico e cultural desumano cujo ideal é vir a substituir o trabalhador por uma máquina, e a diversidade pela concentração do poder.
Na verdade, deveria ser obrigatório esclarecer, particularmente nas escolas superiores artísticas, o que é o “Efeito Baumol”. Para este professor americano era um dilema económico que para executar um quarteto de cordas de Beethoven fosse necessário o mesmo número de músicos no século XIX como no século XX, enquanto numa fábrica, no mesmo espaço de tempo, se tinham reduzido substancialmente o número de operários e se produzia muitíssimo mais.
O mesmo se poderia dizer de uma obra de teatro, ópera ou bailado, assim como noutros sectores da sociedade. Todos estamos lembrados de uma antiga Ministra da Educação que não compreendia porque é que as aulas de piano no Conservatório tinham que ser individuais, em vez de haver turmas com muitos alunos como noutras disciplinas.
De facto, a situação tendencialmente precária, intermitente e/ou “multitasking” da generalidade dos trabalhadores, tem sido inspirada pela condição laboral dos artistas ao longo do tempo. Se os actores, os bailarinos e os músicos, apesar de todas as dificuldades, têm conseguido continuar a sobreviver nestas condições, porque não todos os outros?
Paralelamente, seria necessário reflectir sobre o surgimento de festivais e outros eventos similares, com programadores, ou directores nacionais ou municipais de teatros, com agendas políticas pessoais ou de lobbies, e ponderar acerca do modo como esta realidade tem vindo a contribuir paulatinamente para o “distanciamento social” das companhias, grupos e artistas com os seus públicos, impossibilitando o estabelecimento de relações regulares, directas e construtivas entre eles.
Para quê dar apoios a estruturas profissionais de artistas que possibilitem a continuidade de um trabalho cultural, educacional e social, de proximidade, ao longo do tempo com as comunidades, se é possível criar eventos pontuais com mais visibilidade, com menos custos, e com um número menor de criadores, quase sempre os mesmos, que podem ir circulando por determinadas “redes” de acordo com o “gosto” e “amizades” pessoais de programadores indigitados “politicamente” e financiados com dinheiros públicos?
Para quê pagar a um actor, bailarino, músico ou técnico, um ordenado anual, com contrato e segurança social, se é mais barato tê-lo pontualmente como prestador de serviços a recibos verdes?
Esta tem sido a lógica dos novos “Barões da Cultura”, daqueles que fizeram o “assalto” às instituições, ao abrigo de conivências sem transparência, sem concursos públicos, alguns inclusivamente sem terem as habilitações académicas normalmente exigidas para cargos do Estado. Numa estratégia de “cartel” comportam-se como eucaliptais que sugam exclusivamente para si grande parte dos recursos do ecossistema cultural, deixando migalhas para os outros, excluindo a maior parte do tecido criativo do país, e desertificando e branqueando a história e a memória artística e cultural anterior, ou lateral, a eles.
Se noutros sectores da sociedade se pretende substituir o trabalhador por uma máquina, por ser mais rentável, porque é que no teatro, na dança e na música, não se poderiam substituir os diversos artistas por apenas alguns “eleitos” de cada área, ou até mesmo impor um “génio” que fosse o único a fazer arte, três em um, director, programador e criador, uma voz exclusiva e monocórdica?
Na “Ópera dos Mendigos” o dramaturgo e político checo Vaclav Havel termina a sua peça pondo na boca de uma das suas personagens a seguinte frase “Serve melhor quem não sabe que serve”. Ora, é precisamente ao longo desta obra teatral que é feita a desmontagem dos mecanismos de manipulação e ocultação do poder, que fazem de uma mentira hedionda uma verdade incontestável, colocando e condicionando ao seu serviço fiéis seguidores que ignoram profundamente os propósitos que estão a servir.
É a hora dos artistas saberem com clareza a quem verdadeiramente devem dedicar a sua criatividade, imaginação, engenho e arte, e a sociedade portuguesa saber que sem os artistas e a sua pluralidade e diversidade de propostas estéticas, a língua, a história e a cultura do nosso país fica irremediavelmente mais pobre.
É a hora de os artistas se declararem conjuntamente “dissidentes” de um sistema de apoios à cultura, estrutural e reiteradamente “confinado” a determinadas correntes ou narrativas da moda, que pretende centralizar decisões, e institucionalizar permanentemente uns poucos, em prejuízo da grande maioria dos criadores e das próprias comunidades de todo o país e de diferentes gerações e sensibilidades artísticas.
É a hora de se ouvir e dar visibilidade ao que muitos artistas de diferentes gerações têm escrito e dito nestes últimos anos, denunciando uma série de situações no âmbito da cultura que atentam ao mais elementar sentido de clareza e equidade, e que têm sido arredados ou abertamente excluídos de apoios institucionais, e silenciados pela falta de ressonância das suas actividades nos meios de comunicação social.
É a hora para que todos os cidadãos se apercebam de que os artistas têm sido, e continuam a ser, as cobaias para uma certa reengenharia social que pretende, como dizia há um século atrás o economista italiano Achille Loria, que uns poucos vivam sem trabalhar, enquanto muitos outros trabalhem sem poder viver humanamente. Ou como alertou Hannah Arendt, para os perigos de uma cada vez maior precarização ou mesmo extinção de trabalhos, fazendo mormente dos artistas, já não criadores, produtores e consumidores, mas sim meros criados, dispensáveis e consumíveis.
É a hora de sublinhar que estamos todos interligados e que devemos persistir e afirmar, como defendeu Vaclav Havel, o poder dos sem poder, de forma desassombrada, solidária e independente.