A nacionalidade por naturalização dos descendentes de judeus sefarditas: em busca de um equilíbrio de valores e princípios
Dá-se plena expressão ao nobre objetivo da Lei de 2013, de promover o regresso dos descendentes de judeus sefarditas ao seio do povo português.
Muito se tem escrito e dito sobre proposta do PS que visa alterar o regime especial de naturalização dos descendentes de judeus sefarditas, adjetivando-a, incompreensivelmente, de antissemita ou qualificando-a como um erro histórico.
O primeiro equívoco reside logo na perceção de que se trata de dar a nacionalidade portuguesa a judeus sefarditas, ou seja, judeus originários da Península Ibérica. Tal não é assim, pois a lei aplica-se aos seus descendentes, independentemente de serem, hoje, judeus, cristãos, muçulmanos ou simplesmente não terem nenhuma religião. Em segundo lugar, não se pretende revogar este regime especial (o que seria um erro histórico), mas tão só densificar o seu objetivo que é e sempre foi “promover o retorno dos descendentes dos judeus expulsos ou dos que fugiram do terror da Inquisição ao seio do seu povo e da sua nação portuguesa”, como se lê no projeto de Lei do PS que deu origem a este regime, em 2013. Ou, como pretendeu o CDS-PP, concretizar o genuíno desejo dos descendentes de judeus sefarditas de recuperar a nacionalidade portuguesa dos antepassados, que esbarrava no facto de a Lei prever uma forma de naturalização puramente discricionária de descendentes de portugueses, para além da dificuldade inerente a uma prova documental que teria de recuar mais de 500 anos.
Por isso, em 2013, PS e CDS-PP propuseram, em nome de uma reabilitação ou justa reparação histórica, um regime especial que permite conceder a nacionalidade portuguesa aos que descendem de judeus sefarditas com base em elementos de prova objetivos como o apelido, o idioma familiar (ladino), a genealogia ou a memória familiar.
E foi este regime que permitiu a milhares de descendentes de judeus originários da Península Ibérica adquirir a nacionalidade portuguesa, pouco importando se, hoje, são judeus, se alguma vez visitaram Portugal ou se falam uma palavra de português, já que a lei a este respeito não faz qualquer exigência.
Por outro lado, ninguém pode ignorar que, muitas vezes, a mais nobre das intenções corre o risco de ser desvirtuada. O facto de Portugal estar integrado na União Europeia dá à nacionalidade portuguesa uma dimensão adicional inerente à Cidadania Europeia, permitindo a livre circulação e direito de residência em qualquer Estado-Membro e a isenção de vistos para entrar em cerca de 185 países do Mundo. E esta é uma vantagem inegável de quem tem um passaporte português, mas da qual também decorrem obrigações adicionais perante estes nossos parceiros.
Que o diga Blaise Baquiche, jovem britânico, que contou, recentemente, a sua “jornada pessoal para recuperar o passaporte europeu” ao The New European. Filho de mãe católica, educado numa escola anglicana, sabia que a família do pai era sefardita oriunda do Egipto. Como confessa, até ao “Brexit” nunca se sentiu judeu sefardita, mas foi esta sua condição de descendente que lhe permitiu alcançar o seu objetivo, manter-se cidadão da UE. Preferiu pedir a nacionalidade portuguesa, “por ser mais fácil que a espanhola”, pois o processo especial de naturalização de descendentes de judeus sefarditas em Espanha, que terminou em outubro de 2019, impunha requisitos adicionais, como a aprovação num teste de conhecimento de língua espanhola e prova de integração na sociedade espanhola, que ele não poderia cumprir. Assim, provou que era descendente de judeus sefarditas através da Ketuba (certificado matrimonial adornado em estilo sefardita, usado na comunidade do Cairo) dos seus avós paternos, originários do Egipto. Confessa que sentiu estranheza por pedir a nacionalidade de um país com o qual não tem qualquer conexão cultural ou emocional, mas esta foi a única via que encontrou para manter todos os seus direitos de cidadão da UE. Se Blaise fosse neto de um emigrante português originário de Bragança, do Porto ou dos Açores não teria, hoje, o seu desejado passaporte europeu, pois teria de ter provado uma efetiva ligação à comunidade nacional, materializada no conhecimento da língua portuguesa e em contactos regulares com Portugal, o que só é obrigatoriamente reconhecido se residir aqui 5 anos ou, sendo estudante, residir três anos (artigo 1.º e artigo 10.º-A do Regulamento da Nacionalidade).
A história de Blaise é semelhante à de várias pessoas que pedem a nacionalidade portuguesa por esta via. Porém, sendo a nacionalidade a expressão de um qualquer vínculo entre uma pessoa e a comunidade a que se pertence (porque se nasceu no território, porque o progenitor é português, porque se é membro de uma família portuguesa, porque aqui se reside e se partilham as venturas e desventuras de um Povo, porque com a comunidade se tem uma qualquer ligação efetiva e genuína) não deixa de causar apreensão que a nacionalidade portuguesa seja representada principalmente como um vantajoso passaporte europeu. Naturalmente existe também a história de muitos descendentes de judeus sefarditas, que sentem uma ligação afetiva e genuína a Portugal e à pátria dos seus ancestrais antepassados. E foi para eles que esta Lei foi pensada, tendo-lhes permitido, durante um período de sete anos, a possibilidade de concretizarem o seu desejo genuíno de recuperar a nacionalidade dos antepassados, sem necessidade de falar português ou sequer de visitar Portugal. Mas a verdade é que tal como está formulada, a Lei também permite dar a nacionalidade portuguesa a quem não tem qualquer ligação efetiva ou mesmo afetiva ao País. Basta fazer como o Blaise ou pagar os serviços de alguém que o faça.
Pedir a demonstração de elementos que comprovem uma ligação atual a Portugal e, portanto, um interesse genuíno em fazer parte integrante do Povo português, não me parece ser um sacrifício, antes é uma consequência lógica de tal sentimento de pertença. E não se diga que a exigência de uma tal ligação, aferida de forma objetiva, anula o objetivo da lei, ou que a medida é antissemita. Por um lado, preserva-se um regime especial e mais vantajoso que permite a um descendente de judeu sefardita aceder à nacionalidade, fazendo, assim, uma discriminação positiva, em nome da conciliação histórica. Por outro lado, dá-se plena expressão ao nobre objetivo da Lei de 2013, iniciada em boa hora por Maria de Belém e José Ribeiro e Castro, de promover o regresso dos descendentes de judeus sefarditas ao seio do povo português e retomar com eles um laço de ligação genuína e efetiva, que terá expressão na nacionalidade portuguesa que não é, nem nunca poderá ser, apenas um passaporte europeu.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico