Vem aí uma avalanche de processos judiciais de família!
A necessária ponderação entre garantias processuais, por um lado, e celeridade do sistema, por outro, não poderá fazer-se sempre à custa desta última. À Justiça cabe a delicada missão de manutenção da paz social, o que não sucederá se pequenos litígios de âmbito familiar desencadeados pela pandemia permanecerem anos em tribunal.
Esta terrível pandemia deixará para trás um rasto de famílias destroçadas.
Destroçadas pela tremenda crise económica cuja extensão e repercussões ainda não conseguimos sequer antecipar, mas destroçadas também ao nível emocional e relacional.
Nós, advogados de família, bem sabemos que o número de divórcios é sempre maior em Setembro e Outubro, após as férias de Verão, e também em Janeiro, na sequência das festas de Natal e fim de ano. Dizem os psicólogos que estes períodos de convívio mais intenso põem a nu as fragilidades da relação conjugal e justificam o acréscimo de separações.
O que será de esperar agora, após semanas e semanas de confinamento em casa, muitas vezes tendo que conjugar teletrabalho com tarefas domésticas e o cuidado das crianças?
Divórcios e separações trazem também, em tantas situações, litígios relativos aos filhos. Muitos destes conflitos parentais acabarão, já o sabemos, em tribunal. O mesmo destino terão as queixas daqueles pais e mães separados ou divorciados que, durante o confinamento, ficaram privados do convívio com os filhos a propósito – ou a pretexto – da pandemia.
A crise económica justifica, por sua vez, toda uma série de novos processos referentes a pensões de alimentos: muitas não foram pagas ou foram-no apenas em parte; outras terão de ser ajustadas à realidade daqueles que perderam o seu emprego ou o seu negócio; noutros casos haverá que fixar pensões de alimentos em situações onde até aqui elas não eram necessárias.
Todos estes novos processos irão somar-se às dezenas de milhar de outros já em curso, e que estão a sofrer tremendos atrasos com a paralisação praticamente total do sistema de justiça a que assistimos desde meados de Março e a que já nos referimos noutro artigo.
Esperamos, pois, um aumento brutal do número das pendências nos tribunais de família.
Ora, antevendo-se um possível cenário de rutura na jurisdição de família e menores – e porventura noutras, como a jurisdição laboral –, quais as concretas medidas postas em prática pelo Ministério da Justiça para atalhar este problema? Como se recuperarão os atrasos e se fará Justiça em tempo útil?
A resposta a esta questão é a tradicional entre nós: nenhuma… na data em que escrevo, não é conhecida uma única medida destinada a obviar ao inevitável estrangulamento do sistema. Reina o proverbial imobilismo e aversão à inovação e mudança que caracteriza o nosso sistema de Justiça.
Aqui ao lado, em Espanha, foi já publicado o Real Decreto-Ley 16/2020, de 28 de abril, que em matéria de família e menores prevê a vigência de um procedimento judicial muito simplificado, com redução ao mínimo de formalidades para os litígios mais comuns. O julgamento, a que as partes deverão logo comparecer munidas das provas, realiza-se nos dez dias seguintes à entrada da petição em tribunal, sendo depois proferida a sentença no prazo de três dias úteis. Aplicar-se-á aos litígios resultantes do incumprimento de regimes de visitas e em matéria pensões de alimentos. Trata-se de uma tramitação simples, adequada a litígios de complexidade diminuta como o são grande parte dos originados pela pandemia. A aplicação deste regime é temporária e vigorará apenas até ao final do terceiro mês seguinte ao decretamento do fim do estado de alarme.
A solução castelhana afigura-se ágil e equilibrada e poderá aliviar significativamente o número de processos pendentes em tribunal. Por outro lado, os problemas que afligem os nossos vizinhos ibéricos são também, afinal, aqueles com que nos defrontamos em Portugal. O mesmo é dizer que faria sentido equacionar a adoção por cá de uma solução idêntica destinada a solucionar litígios de complexidade reduzida.
É certo que, dos sectores mais conservadores da Justiça, logo surgiriam vozes clamando que o procedimento abreviado espanhol não oferece garantias processuais bastantes. Mas, pergunto, de que servirão tais garantias a quem, recorrendo agora ao tribunal, só poderá esperar obter uma sentença dentro de um ou dois anos?
A necessária ponderação entre garantias processuais, por um lado, e celeridade do sistema, por outro, não poderá fazer-se sempre à custa desta última. À Justiça cabe a delicada missão de manutenção da paz social, o que não sucederá se pequenos litígios de âmbito familiar desencadeados pela pandemia permanecerem anos em tribunal. Não serve o cidadão e descredibiliza o sistema.