Rios de tinta e rios de dívida
O facto é que está criada uma crise séria no coração do euro, uma vez que sem o Bundesbank o euro não é nada.
A propósito do recentíssimo acórdão de 5 de Maio do Tribunal Constitucional Alemão
O artigo 123.° do Tratado da União Europeia proíbe o financiamento monetário dos Estados‑membros, bem como a compra directa de títulos de dívida desses Estados pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais.
Esta proibição já tinha feito correr rios de tinta a propósito da aprovação do Tratado de Maastricht em 1992, uma vez que tem por consequência que desaparece o financiador de último recurso e os Estados ficam inteiramente dependentes dos mercados de capitais e do rating de crédito que tenham.
«Com a crise de 2008, que começou na banca e rapidamente alastrou ao crédito soberano, vários Estados europeus, entre os quais o célebre “club med” dos países do sul, viram os seus spreads de crédito crescer exponencialmente até ficarem a seco, sem meios para funcionar.
O Banco Central Europeu, perante a iminente ruptura do sistema euro, anunciou estar na disposição de fazer tudo o que fosse necessário para salvar o euro, e fez: no início de 2015, lançou duas iniciativas de grande alcance: um programa de compra de títulos de dívida pública emitidos pelos Estados‑membros da área do euro (operações monetárias definitivas, “OMT") que até à data, nunca foi aplicado, mas que pelo simples facto de ser anunciado, acalmou os mercados; e um programa de compra de activos do sector público em mercados secundários ("PSPP"), que é aplicado há mais de cinco anos e levou a operações de compras pelo BCE de mais de dois triliões de euros de dívida pública dos Estados-membros. Um rio de dívida equivalente a mais de metade do PIB da Alemanha.
Com receio que que estas iniciativas constituíssem o Banco Central Alemão em sérias responsabilidades perante o sistema de bancos centrais da União, grupos de cidadãos alemães impugnaram perante a Justiça alemã as omissões de protecção dos interesses nacionais por parte do Estado alemão, alegando que se por essa via a Alemanha viesse a ser responsabilizada pela dívida assumida pelo BCE, estariam a ser violadas as prerrogativas constitucionais do parlamento alemão, única entidade que pode autorizar o aumento da dívida do Estado.
Defenderam, por um lado, que o BCE tinha violado a regra que proíbe o financiamento dos Estados, agindo para além da competência que lhe foi atribuída pelos tratados (ultra vires) e que, por outro, essa violação dos tratados não era oponível à Alemanha, que não pode ficar vinculada pelas decisões “ilegais” do BCE.
O caso chegou ao Tribunal Constitucional Alemão que pediu ao Tribunal de Justiça da União que dissesse se tinha havido violação dos tratados. Em Dezembro de 2018, o Tribunal da União considerou que as decisões do BCE são compatíveis com os tratados.
Em 5 de Maio passado, o Tribunal Constitucional Alemão considerou, em desrespeito da decisão do Tribunal da União, que o programa de compra de divida soberana pelo BCE excede as competências que os Tratados lhe atribuem, não sendo portanto oponível à Alemanha, e proibiu expressamente o Bundesbank de continuar a participar na implementação e execução das decisões do BCE em causa.
A Comissão veio já declarar que “o direito da União tem primazia sobre os direitos nacionais"; O BCE, através da Sr.ª Lagarde, declarou que manterá o rumo, sendo uma instituição independente com um mandato que tudo fará para cumprir.
O facto é que está criada uma crise séria no coração do euro, uma vez que sem o Bundesbank o euro não é nada, seria apenas o euro do “club Med” e que, para manter o Bundesbank no sistema, o BCE tem de pôr termo à compra de dívida soberana. Esta é a questão política. Para os juristas ficam as questões fascinantes de saber se de facto o BCE ultrapassou o seu mandato e se a Alemanha tem de acatar a decisão do Tribunal de Justiça da União, que se sobreporia à do seu próprio Tribunal Constitucional.
Vão correr rios de tinta, mas duvido que continuem a correr rios de dívida.