Há sempre alguém que nos alimenta
De Belém do Pará a São Petersburgo, passando pela ilha da Madeira e o Guadiana, a tentar conhecer os outros, comendo e bebendo com eles.
Olhando para trás, de repente, para surpreender a nossa própria memória, há imagens que surgem imediatamente. Por exemplo, a fila de clientes que esperavam, sentados em cadeiras de plástico, para comer, pelas cinco da tarde, o tacacá da dona Maria, em Belém do Pará, e eu e o Nelson Garrido, ainda mal refeitos do açaí com peixe frito, a provar o caldo de tucupi com jambu, sem sabermos bem o que fazer com tanta informação nova a invadir-nos a boca.
Houve muitos momentos assim, carregados de descobertas, desde a viagem a Copenhaga para jantar no restaurante Noma, onde fui confrontada, pela primeira vez, com a possibilidade de comer formigas vivas, até São Petersburgo, onde, de dedos engordurados pelos pyshki servidos por uma russa mal-encarada, viajei pelos sabores da velha-nova cozinha soviética.
Israel ficou-me na memória como um caleidoscópio contínuo de sabores, cores, legumes e queijos deliciosos, restaurantes nos quais se dançava em cima das mesas, e a dificuldade em escrever sobre o hummus, que (também ele) aproxima e divide árabes e israelitas.
Mas talvez poucos sítios me tenham marcado tanto como, de volta ao Brasil, a encantadora cidade de Goiás. Ainda oiço, com tanta saudade, Aloísio, na sua voz cantada, a falar do bolo de arroz da avó e a declamar poesia no pátio da sua casa, depois de um jantar mágico, nessa terra em que em cada porta há uma doceira, e homens de chapéu de cowboy transformam a cana em açúcar.
Foi, contudo, no Peru que melhor percebi o impacto da cozinha num povo. No festival Mistura, descobrindo mais variedades de batatas do que imaginava que existissem e provando o mais poderoso leche de tigre da minha vida, conheci os rapazes e raparigas que, vindos de vidas muito difíceis, apostavam tudo no sonho de serem cozinheiros e ouvi o chef Gastón Acurio explicar que “a cozinha tem que ser algo mais do que dar de comer aos poucos que podem pagar”.
No Algarve, no já desaparecido festival gastronómico do hotel Vila Joya, estive, numa espécie de mundo de fantasia, entre esses “poucos que podem pagar” e recordo o jantar dos chefs vindos da Tailândia e a sobremesa servida em folhas de bananeira sobre as quais se partia uma bola de chocolate da qual saíam fios de ovos, a mesma receita que um dia os portugueses levaram para a Ásia.
E se o Algarve oferecia o luxo extremo, não muito longe daqui, junto a Espanha, a subida do Guadiana, a comer amêndoas e a ouvir histórias do contrabando, não ficou atrás no luxo de nos sentirmos em casa, a jantar na destilaria da família Jerónimo da Feito no Zambujal. O mesmo luxo reencontrado na descoberta dos engenhos da cana-de-açúcar na Madeira ou das deliciosas Tabernas do Alto Tâmega.
Paisagens e sabores ficam gravados na memória, mas são as pessoas que nos marcam mais profundamente. É, por isso, impossível esquecer como os dois irmãos Roca, Joan e Josep, do El Celler de Can Roca, em Girona, me comoveram pela delicadeza, a sensibilidade, o saber olhar e ouvir os outros – só assim se pode entender a comida, o vinho, as paisagens, as pessoas, o mundo. Só assim vale a pena viajar.
Alexandra Prado Coelho está no PÚBLICO desde 1990, foi jornalista do Mundo e da Cultura, e em 2011 chegou à Fugas, onde escreve sobre gastronomia e comidas em geral, com algumas incursões pelos vinhos e por histórias boas, onde quer que elas se encontrem.