Os sobreviventes

Esta é a primeira conversa da nossa sexta memória, dedicada à questão dos direitos humanos.

Gaetano Salvemini entra no anfiteatro, encara os seus alunos, esboça talvez um sorriso, e diz: “como estávamos a dizer na nossa última aula”. E continua. Como se não tivesse havido nada. Como se o mundo dentro da sala de aula, a aula de história nem mais nem menos, permitisse pôr um parêntesis à volta de tudo o que tinha acontecido. Ou como se o exilado saboreasse, com aquela travessura, a sua sobrevivência sobre os seus carrascos — vejam a pouca importância que vos dou, faço aqui de conta que não tentaram destruir a minha vida, que não existiram sequer. Ou talvez fosse aquela uma demonstração de resiliência e de coragem. Não nos vergaram, é manter a calma e seguir em frente. Pode ter sido tudo isso.

Mas o que foi certamente foi um acto de memória. Os historiadores têm memórias longas e gostam de pormenores de que ninguém se lembra. Gostam de os recuperar, de lhes dar sentido, de os encher de significado. Gaetano Salvemini sabia muito bem que aquela frase — “como eu estava a dizer na última aula” — tinha sido também o bordão do seu amigo Filippo Turati quando tinha sido metido na prisão logo no início dos anos 20, ainda antes de terem assassinado o seu discípulo Giacomo Matteotti. Ao sair, Turati tinha ido dar uma aula, e iniciou-a com a frase em latim “heri dicebamus”, que quer dizer, “dizíamos ontem…”.

Por sua vez, a origem da frase é atribuída a um humanista espanhol, Fr. Luys de León, que foi preso pela Inquisição entre 1572 e 1576, e que quando em 1577 o deixaram regressar às aulas começou à mesma pela frase com que sempre começava: “dicebamus hesterna die…”. Dizíamos no dia de ontem…

Esta é a segunda conversa da nossa sexta e última memória, intitulada “A Pergunta”, dedicada aos direitos humanos.

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