O modelo sul-coreano na luta contra a covid-19: Estado, transparência e direitos individuais

Na procura de explicações para o modelo sul-coreano existe uma tendência para um olhar simplista da sociedade como sendo muito hierarquizada, autoritária e coletivista, com raízes na filosofia Confucionista. Mas a explicação para o sucesso do modelo sul-coreano na contenção da pandemia está longe de ser algo tão orientalista.

No início da pandemia da covid-19, a Coreia do Sul chegou a ser o país com o segundo maior número de infetados, depois da China. Agora é vista como um exemplo na gestão da luta contra a covid-19. O governo atual da Coreia do Sul, que ganhou com uma maioria histórica as eleições parlamentares no mês passado, não escolheu o confinamento nesta gestão preferindo implementar um programa de testes em massa da população e utilizar a sua infraestrutura tecnológica para monitorização do contágio.

Na procura de explicações para o modelo sul-coreano existe uma tendência para um olhar simplista da sociedade como sendo muito hierarquizada, autoritária e coletivista, com raízes na filosofia Confucionista onde as pessoas são mais obedientes ou educadas a comportarem-se de forma regimentada e a respeitar criteriosamente as orientações do governo. Mas a explicação para o sucesso do modelo sul-coreano na contenção da pandemia está longe de ser algo tão orientalista. A fórmula tem passado acima de tudo pela confiança da sociedade na resposta do Estado na luta contra a pandemia. Um Estado que parece ter aprendido a lição com os seus falhanços durante a epidemia MERS (Síndroma Respiratória do Médio Oriente) em 2015 e que agora abraça a transparência na relação com a sociedade.

A MERS matou 38 pessoas, infetou 186 outras e colocou mais de 16 mil em quarentena em casa ou em hospitais para conter o contágio. Durante esta epidemia, as instituições públicas falharam em dar uma resposta rápida: (1) não tinham um sistema de alerta instalado para diagnosticar de forma mais precisa casos suspeitos; (2) faltaram testes de diagnósticos laboratoriais rápidos; e (3) houve falta de transparência na comunicação com a sociedade. Os hospitais foram os principais focos de contágio mas as autoridades optaram por não divulgar quais é que tinham sido visitados por pessoas infetadas ou que tinham pessoas internadas com a MERS. As autoridades não só não queriam violar a privacidade dos pacientes e a ética médica mas também temiam a reação dos hospitais. Na Coreia do Sul, a maioria dos hospitais são privados e caso diagnosticassem casos MERS podiam ser obrigados a fechar. A ser assim, os hospitais perderiam rendimento e o governo perdia capacidade de resposta médica nacional.

No entanto, a forte pressão pública para mais transparência acabou por levar o governo a divulgar os nomes dos hospitais e também a rever a Lei de Prevenção e Controlo de Doenças Infeciosas após o final de epidemia em 2015. Desde então, todo e qualquer cidadão tem não só o direito de obter informação por parte do Estado e governos locais sobre a situação e medidas de prevenção e controlo do surto de doenças infeciosas como tem que ser compensado, por quaisquer danos, pelas mesmas entidades públicas, caso sejam colocados em quarentena ou fiquem sob tratamento médico. Por outro lado, aos cidadãos cabe-lhes cooperar ativamente com o Estado e governos locais responsáveis pela implementação de medidas de prevenção e controlo de doenças infeciosas.

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Seul, 10 de Maio: a Coreia do Sul é vista como um exemplo no combate à pandemia EPA/YONHAP

Quando começaram a emergir em Janeiro de 2020 notícias de Wuhan, na China, sobre o surto de covid-19, a resposta das atuais autoridades sul-coreanas foi significativamente diferente do anterior governo. Todos os viajantes provenientes da cidade chinesa eram monitorizados à entrada da Coreia do Sul, através da medição da sua temperatura. A China não só é a mais importante parceira económica da Coreia do Sul como a principal fonte de turistas do país. Uma semana após o primeiro caso de covid-19 no país, o governo sul-coreano organizou uma reunião com 20 empresas farmacêuticas para criar uma parceria público-privada que aumentasse rapidamente a produção de material de proteção médico e testes de diagnóstico. E começou a recorrer a três instrumentos importantes da sua infraestrutura tecnológica: (1) cartões de crédito ou débito; (2) telemóveis; e (3) câmaras de vigilância CCTV.

Com estes três instrumentos, as autoridades sanitárias conseguem saber com quem a pessoa infetada esteve em contacto próximo antes de ter sido diagnosticada com covid-19. A partir desta infraestrutura tecnológica quase todos os potenciais infetados podem ser encontrados e testados. Depois, os movimentos do novo paciente podem ser comparados com os de pacientes anteriores usando sistemas de geolocalização. Essa comparação revela onde, quando e quem o poderá ter infetado. Se não é possível associá-lo com um paciente já conhecido, então significa que existem pacientes não conhecidos (os tais assintomáticos) e assim podem ser identificados através destes sistemas. Este dado pode ser importante para se saber se a situação está ou não sob controlo. Se esta monitorização já por si levanta questões sobre a erosão do direito à privacidade dos pacientes, uma outra característica do modelo sul-coreano é ainda mais controversa.

Os resultados desta monitorização não são apenas acedidos e usados pelas autoridades sanitárias mas, em resultado da emenda da Lei de Prevenção e Controlo de Doenças Infeciosas, tornados públicos em websites do governo nacional e local, apps gratuitas que mostram os locais das infeções e em SMS actualizadas e enviadas regularmente indicando os locais dos novos casos. Desde que não seja dada a identidade do paciente, os governos locais têm liberdade para divulgarem os movimentos da pessoa infetada que considerarem ser mais relevantes, como os locais onde estiveram e a que horas. Isto acaba por ajudar os cidadãos a evitar focos de infeção.

Contudo, está-se perante uma situação clara de exposição pública de informação privada sobre os movimentos de cada um. Nalguns casos, as autoridades locais libertaram informação demasiado detalhada que possibilitou a identificação nas redes sociais das pessoas infetadas, que acabaram por ser sujeitas a críticas e mensagens de ódio virtuais. O presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos do país já declarou a sua preocupação com estas situações e criticou o facto de as autoridades estarem a divulgar mais informação do que a necessária para conter o contágio, levando à violação da privacidade dos pacientes e a potenciais danos emocionais. As autoridades parecem agora dispostas a manter a divulgação pública das informações mas garantindo o anonimato das pessoas infetadas.

Uma sondagem realizada em Fevereiro de 2020 revelou que a maioria dos inquiridos tinha mais medo de ser criticada por estar infetada do que vir a ser contagiada pela covid-19. De facto, o caos durante a epidemia MERS parece ter levado a sociedade sul-coreana, agora, a preferir sacrificar a privacidade individual para evitar consequências futuras que podem ser muito mais graves para toda a sociedade. O impacto da epidemia MERS  parece ter criado um equilíbrio frágil e delicado entre um Estado do qual se espera capacidade de resposta, transparência e que deve assumir a responsabilidade por zelar pela vida de cada um dos seus cidadãos e uma sociedade que se mostra disposta a cooperar nos comportamentos (distanciamento social e uso de máscaras) e a tolerar uma certa vigilância dos seus movimentos. Uma vigilância que é feita não apenas pelas autoridades mas também pelos concidadãos. Se para o Estado esta transparência pode ajudar a ganhar a confiança dos cidadãos, prevenir o pânico depois dos falhanços com a MERS e evitar o confinamento, para a sociedade ela parece ser antes vista como um instrumento de empoderamento face a um Estado que no passado se mostrou opaco e incapaz de defender o interesse público.

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Em Abril, 29 milhões de coreanos deram uma vitória histórica ao partido do Presidente Moon Jae-in (à esq. na foto) EPA/YONHAP

Os resultados das últimas eleições parlamentares talvez ajudem a mostrar o nível de confiança da sociedade sul-coreana no modelo de luta contra a covid-19. No dia 15 de Abril de 2020, o progressista Partido Democrático do atual Presidente Moon Jae-in, responsável pela implementação do modelo, teve uma vitória histórica. Desde a transição democrática do país em 1987 que nenhum partido tinha conseguido uma maioria parlamentar com esta dimensão, conquistando 180 dos 300 assentos. Munidos das suas máscaras e colocando-se em filas de espera seguindo as regras de distanciamento social nos locais de voto, milhões de cidadãos exerceram o seu direito político. Antes de colocar o seu voto na urna, a temperatura de cada um foi medida, as suas mãos desinfetadas com álcool e depois cobertas com umas luvas descartáveis.

Mais de 29 milhões de eleitores participaram nas eleições, ou seja 66,2% dos eleitores inscritos. Esta foi a maior participação eleitoral nos últimos 28 anos na Coreia do Sul, um exercício absolutamente notável de cidadania. Passados quinze dias, nenhum cidadão tinha sido infetado por ter comparecido nas urnas. Na Coreia do Sul, está-se a perder a imunidade de grupo à privacidade.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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