Temos que ver tudo outra vez – mas a Guiné será sempre a mesma

Há em tudo isto que nos aconteceu nos últimos meses uma conclusão óbvia: temos que ver tudo outra vez. Dar novas voltas à nossa cidade, ao nosso país, ao mundo quando pudermos. E quando o fizermos talvez seja com olhos de viajante de primeira viagem.

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Paulo Pimenta

Houve a Tailândia, o Peru, Itália (teremos sempre Itália…), mas depois houve a Guiné, em Maio de 2017. Foi a mãe de todas as viagens – ou melhor, o pai. Podem vir mais 300 partidas e chegadas, mas nenhuma será como aquela. Nunca lá tinha estado, mas aqueles foram os dias do meu regresso à Guiné, à boleia de memórias repetidas uma e outra vez, vezes sem fim, e de fotografias a preto e branco que levei numa bolsa a tiracolo. O meu pai amava a Guiné e eu amo o meu pai. Já ele se tinha ido embora quando lhe escrevi uma carta de amor na Fugas: nunca é tarde para uma carta de amor que começa com o sabor inconfundível das mangas da Guiné e acaba com uma promessa de regresso àquele país de terra vermelha. A oportunidade de procurar as memórias do meu pai pelas ruas de Bissau, onde cumpriu parte do seu serviço militar, de Abril de 1966 a Março de 1968, ficará para sempre como o momento alto da minha duradoura amizade com a Fugas.

É verdade que é um privilégio ter um trabalho destes – e quantas vezes somos alvo das bocas dos amigos. Quem nunca sentiu uma pontinha de inveja que atire a primeira a pedra: Luís, António, Bruna, Sara, Maria João, Anabela, Sílvia? Mas o que a maioria não sabe é que muitas vezes é tudo menos fácil traduzir por palavras o que se sente, por exemplo, depois de uma refeição que dura quase quatro horas no Ocean, o restaurante estrelado do Vila Vita Parc, no Algarve. Sobretudo para quem, como eu na altura, estávamos em 2010, tinha pouquíssima experiência nessa coisa dos sabores. Foi no Ocean que percebi que, afinal, gosto (e muito) de caril.

Pelo contrário, no Six Senses Douro Valley confirmei, após muitas tentativas nos mais diversos restaurantes e aparentados, que as ostras não são para mim. Mas aquele hotel sim: já tive a sorte de lá ficar várias vezes e até me imagino a viver na antiga Quinta de Vale Abraão, o Douro à frente dos olhos, Agustina a pairar por ali  – sonhar não custa, ainda mais agora, em tempos de pandemia. Falando em hotéis, importa também recordar que no The Yeatman, em Gaia – provavelmente o hotel com a melhor vista de Portugal –, passei alguns dos finais de tarde mais alegres de sempre, à boleia das suas sunset wine parties. Mais recentemente, num almoço de apresentação do que seria a temporada 2020, pude experimentar a criatividade do chef Ricardo Costa, duas estrelas Michelin, que comanda o restaurante há dez anos, tantos quantos conta o Yeatman. Era suposto que 2020 fosse um ano repleto de comemorações. A ver o que nos reserva o futuro.

Tenho saudades do futuro – e nestes dias em que nos tiraram o mundo quantas vezes já suspirei pelo futuro, que este ano seria na Sardenha –, mas também tenho saudades do passado. Daquela tarde em que eu e o José Augusto Moreira comemos, com a boca e com os olhos, todo o mar na Casa de Chá da Boa Nova; daquela caminhada que parecia não ter fim até à fajã de Santo Cristo, em São Jorge, nos Açores; daquele fim-de-semana nas nuvens na Madeira; daquelas vezes todas em que descobri mais um assombro no Douro: o miradouro de São Leonardo da Galafura ou a Quinta do Vesúvio.

em tudo isto que nos aconteceu nos últimos meses uma conclusão óbvia: temos que ver tudo outra vez. Dar novas voltas à nossa cidade, ao nosso país, ao mundo quando pudermos. E quando o fizermos talvez seja com olhos de viajante de primeira viagem. E aí haverá outra Tailândia, outro Peru, outra Itália. E outra Guiné, mas a Guiné será sempre a mesma para nós, pai.

Sandra Silva Costa é jornalista do PÚBLICO desde 1998 e editora da Fugas desde 2008.

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