Os homens também choram. Reflexão sobre a violência doméstica contra o sexo masculino
A violência doméstica ocorre, predominantemente, sobre as mulheres, mas o número de homens vítimas de abusos tem vindo a crescer. Podemos facilmente cair no erro de pensar que os homens não são vítimas deste tipo de crime mas, ainda não há muitos anos, o mesmo acontecia em relação às mulheres.
A violência doméstica (VD) sobre os homens é uma realidade em todo o mundo. Vários países já criaram respostas específicas para esta problemática. E em Portugal, o que é feito?
B. tem 20 anos, olhar triste e rebelde. Esconde os olhos negros atrás do cabelo desgrenhado e nunca tira o boné que parece usar como escudo. Diz com orgulho que é forte, que está preparado para a vida, que sempre foi vítima de maus-tratos. A mãe também era vítima de violência e foi várias vezes acolhida em casas de abrigo. Após ter completado 18 anos, B. deixou de poder integrar as casas para mulheres. Assim, sempre que a mãe saía de casa, B. tornava-se o alvo da fúria do padrasto, com quem ficava a viver por ausência de respostas. Tinha de aguentar. B. limitava-se a sobreviver entre saídas e regressos da mãe, esperando que esta encontrasse a coragem suficiente para romper definitivamente o ciclo.
M. tem 30 anos e uma ligeira deficiência. Aos três foi institucionalizado após o pai o ter castigado por uma traquinice qualquer, queimando-o com água a ferver. Depois deste episódio, fez múltiplas cirurgias e esteve um ano internado. M. cresceu vazio de laços, a sonhar com uma família. Aos 30 anos, nunca tinha namorado, e quando pela internet lhe fizeram juras de amor correu atrás. Saiu do lar e foi viver com o companheiro para um local distante. M. foi vítima de abuso sexual, físico, emocional e económico. Ficou na relação por ser frágil e por querer amor. As promessas continuavam mas, um dia, M. teve de receber cuidados médicos após uma tentativa de homicídio. Ficou sozinho e precisava de protecção.
H. é um cidadão estrangeiro que veio para Portugal com a namorada portuguesa que conheceu no seu país. H. é licenciado e tem muitas competências, mas não percebeu que a namorada sofria de perturbações mentais. Quando ela descompensou, tentou levá-la ao médico mas ela recusou. H. não sabia falar português, não sabia pedir ajuda. A companheira engravidou e ele precisou de cuidar dela. Acreditou que tudo ficaria bem mas, após o parto, a situação agravou-se. H. estava sozinho, não trabalhava porque tinha de cuidar do filho, pelo que não tinha autonomia financeira. Um dia, H. precisou de pontos, houve uma denúncia e o filho foi institucionalizado.
São histórias de homens vítimas de violência doméstica. Com uma média de 38 anos, são vítimas de maus-tratos físicos, psicológicos, sexuais e económicos cometidos por companheiras/os e familiares. Permanecem nas dinâmicas violentas, pelas suas características de personalidade, pela história de vida, a idade, a saúde, ou por outras condições que os tornaram vulneráveis.
A VD ocorre, predominantemente, sobre as mulheres, mas o número de homens vítima de abusos tem vindo a crescer. Em 2019 morreram em Portugal sete homens vítimas de VD, um número bem menor que o das mulheres mas, ainda assim, relevante, e a APAV contou 2066 denúncias de vítimas homens, contra as 1576 de 2018. O Relatório Anual de Segurança Interna indica, que em 2018, 21% das denúncias de VD foram efectuadas por homens.
Estudos realizados mostram que a maioria das vítimas do sexo masculino não comunica o crime. Só 10% dos homens vítimas de VD apresentam denúncia formal, contra 30% das mulheres. Um estudo publicado pela Universidade do Minho (2017, Andreia Machado e Marlene Matos) refere que apenas 10% dos homens denunciam o crime, só 23% recorrem a um serviço de apoio, e somente 11% relatam a situação a profissionais de saúde, percentagens bem mais baixas do que as relativas às vítimas do sexo feminino.
Além disso, muitos homens remetem-se ao silêncio em fases posteriores do processo criminal, conduzindo ao seu arquivamento. Isto acontece por carência de acompanhamento pelas estruturas de apoio às vítimas, que actuam muito em função do género, mas sobretudo porque se sentem revitimizados. O receio ou a percepção de descrédito e vergonha deixam muitos homens no silêncio, quer numa fase inicial quer durante o processo. Para além do impacto psicológico da vitimação, adiciona-se o impacto social. Há que lidar com a vergonha que decorre do enaltecimento social do homem que não mostra fraquezas. “Um homem não chora!”, ainda se diz.
Por isso, numa lógica de não-violência e de protecção de todos os cidadãos, urge que os serviços identifiquem as situações de VD sobre pessoas do sexo masculino, que as acompanhem e realizem os encaminhamentos necessários. Importa também criar respostas específicas para este grupo de vítimas. A VD é um problema diversificado que implica respostas diferenciadas. Em Portugal, para vítimas mulheres, existem cerca de 65 casas de acolhimento, uma específica para vítimas com problemas de saúde mental, uma para vítimas com deficiência e uma casa de emergência para vítimas LGBTI. Para acolhimento de homens existe apenas uma estrutura, agora no centro do país, com dez vagas para homens vítimas e seus filhos. Em diversos países da Europa e América do Norte, criaram-se linhas telefónicas, legislação própria e inúmeras casas de acolhimento específicas para cada tipologia de vítimas, incluindo as do sexo masculino. Existem redes concertadas, vocacionadas para as especificidades de cada tipo de vítima.
Podemos facilmente cair no erro de pensar que os homens não são vítimas deste tipo de crime mas, ainda não há muitos anos, o mesmo acontecia em relação às mulheres, verificando-se que as denúncias cresceram em paralelo com a evolução e adequação da legislação e dos mecanismos de protecção. As sociedades evoluíram e passaram a promover valores que visam a igualdade, a tolerância, o respeito pelas liberdades individuais e a protecção dos mais frágeis. O poder político tem de olhar com seriedade esta matéria, promovendo a justiça social e criando mecanismos de protecção eficazes para todos os que precisam, independente do género, idade, preferência sexual, política, religiosa e todas as outras diferenças que tornam cada ser humano especial e único.