Jerry Seinfeld voltou, e é tal e qual como antigamente
23 Hours to Kill é o novo especial Netflix do lendário cómico. Disponível desde terça-feira, não acrescenta nada de verdadeiramente novo ao repertório que já conhecíamos – a não ser um mergulho em pleno rio Hudson.
23 Hours to Kill, o novo especial de Jerry Seinfeld que desde terça-feira está disponível na Netflix, começa com a lenda cómica então ainda com 65 anos a saltar de um helicóptero para o meio do rio Hudson, em Nova Iorque. Chegado ao palco do Beacon Theatre, tem uma big band atrás dele, que só aparece ao início, como que a mostrar que o orçamento é chorudo e permite este tipo de envergadura.
Sucedendo a Jerry Before Seinfeld, de 2017, composto maioritariamente por material antigo, 23 Hours to Kill é apenas o quarto especial da carreira do cómico, que antes disso só tinha experimentado o formato um par de vezes, em 1987 e 1998 – antes e depois de Seinfeld, a sitcom dos anos 1990 que o tornou famoso no mundo inteiro e fez dele um multimilionário. Mais uma vez, é um lançamento Netflix, que já tinha lançado Jerry Before Seinfeld e tem sido, ao longo dos últimos anos, a casa do provavelmente finado Comedians in Cars Getting Coffee, o talk show em que, como o nome indica, Seinfeld conversa com outros cómicos enquanto viajam de carro e bebem café.
Filmado em frente a uma cortina azul sem grandes artifícios, além da banda e do salto de helicóptero, cuja preparação é mostrada no final, 23 Hours to Kill vive das observações, irritações e dissecações da vida contemporânea que sempre caracterizaram Jerry Seinfeld. Nenhuma actualização, nenhuma verdadeira novidade. São piadas à antiga, feitas com a mestria de décadas de palcos, que resultam numa hora bem passada. Seinfeld clássico.
Os tópicos deste especial gravado em Outubro do ano passado, quando ainda nem sequer se sonhava com a radical transformação do mundo que chegaria com a covid-19, incluem, entre muitos outros assuntos, buffets, restaurantes sofisticados, telemóveis, SMS, atendedores de chamadas, amizade, como as vidas de toda a gente são uma treta, o pouco que separa algo óptimo de algo que é uma treta, os correios americanos ou os cinemas que pedem aos espectadores para apanharem o lixo que fazem. Tirando as partes mais autobiográficas (os 65 anos e a relação com a mulher e a família também vêm à baila), que são não são propriamente uma constante na carreira deste cómico, não há aqui nada de verdadeiramente novo em relação ao que o Seinfeld de há dez, 20, 30 ou 40 anos faria. O que não é nada mau, já que ninguém faria tão bem como ele estas piadas em particular.
Fora do tempo?
Em conversa com Dave Itzkoff, do New York Times, que o entrevistou a 29 de Abril, dia em que fez 66 anos, Jerry Seinfeld diz sentir-se com muita piada por estes dias, apesar da sombra da pandemia. A esse respeito, aliás, confessou algum arrependimento pelas piadas que em 23 Hours to Kill faz sobre os serviços postais dos Estados Unidos, um serviço valioso actualmente a passar um mau bocado.
Muitos dos pontos de vista exprimidos no especial, e especialmente no que toca à mulher, revelam-se antiquados, mesmo que haja quase sempre boas piadas lá no meio. É, aliás, algo que Jerry Seinfeld consegue fazer mesmo quando os tópicos são batidos e já foram alvos de inúmeras piadas. Mas nem sempre chega. Larry David, o co-criador de Seinfeld e protagonista da sitcom semi-improvisada Calma, Larry!, é melhor a universalizar as preocupações e as irritações de um homem de alguma idade com muito dinheiro. Até quando 23 Hours to Kill mostra alguma auto-consciência, nem sempre é bem-sucedido. Qual é o problema de um cachorro quente ser vendido por um ex-presidiário, algo que Jerry Seinfeld menciona como negativo numa piada?
23 Hours to Kill gaba-se de ser o primeiro especial com novo material de Seinfeld em 22 anos. Só que algumas destas piadas já não são novas. Em 2015, o cómico começou uma diatribe contra “o politicamente correcto”, que na sua visão estava a “a matar a comédia”, por causa de uma piada em que comparava o acto de fazer scroll num telemóvel pela lista de contactos ao gesto de “um rei francês gay”. Numa altura em que já tinha contado a piada em vários programas de televisão, disse a Seth Meyers, no seu Late Night, que vivia com medo da “polícia da ofensa” por causa dela. Pois a mesma piada, que não é particularmente boa ou inteligente, está em 23 Hours to Kill, e nota-se nele um certo alívio quando as pessoas riem, como se tivesse ganho desafio. Se esta piada o fez concluir que há certas coisas que não podem ser ditas hoje, como é que consegue mantê-la num especial ultra-mainstream pelo qual a Netflix lhe pagou 92,5 milhões de euros?
Na mesma entrevista ao New York Times, Seinfeld explica que é possível que este seja o seu último especial. Que nunca deixará os palcos, mas que não quererá deixar-se filmar depois de uma certa idade, e que já desistiu de tentar jogar o jogo do negócio do entretenimento. O próprio discorre, em 23 Hours to Kill, sobre como, aos 65 anos, é mais fácil não fazer nada. Se for mesmo o último especial, e tendo em conta a pouca produtividade que tem tido neste formato, saltar de um helicóptero para o meio do Hudson não terá sido uma má despedida.