Covid-19: Manaus é o epicentro de uma crise que ameaça todo o Brasil
As imagens de caixões em valas comuns percorreram o mundo. O Amazonas é um dos estados mais afectados pela pandemia e agora convive também com uma crise política.
Vêm de Manaus, no coração da floresta da Amazónia, algumas das imagens mais chocantes e dramáticas da crise de saúde pública causada pela covid-19 no Brasil. Valas comuns, aglomerações de caixões e hospitais a rebentar pelas costuras tornaram-se a rotina da capital do maior estado do país.
Se o Brasil está em vias de ser um dos países mais afectados pela pandemia a nível mundial, entrecortado por uma crise política com potencial explosivo, o Amazonas é então o retrato do país em miniatura. Para se ter noção da dimensão da catástrofe que se abateu sobre o estado, hoje as autoridades não referem o receio do colapso do sistema de saúde – que se deu há quatro semanas. Hoje, fala-se sobretudo do colapso do sistema funerário.
De acordo com os dados do Governo federal, o Amazonas registava nesta segunda-feira mais de 6600 casos de infecção por covid-19 e mais de 500 mortos. Mas os números oficiais parecem ocultar uma realidade bem mais preocupante e que é atestada pelo crescimento do número de funerais. As autoridades de Manaus davam conta na semana passada de uma média diária de cem mortos, quando em circunstâncias normais o pico de funerais estava em torno dos 35, de acordo com o El País Brasil.
Foi essa subida acentuada do número de funerais que levou as autoridades a ampliarem cemitérios existentes em Manaus. Vídeos mostravam engarrafamentos de carros funerários à espera de vez para sepultarem mortos, muitos dos quais infectados pelo coronavírus. Perante uma nova ameaça à saúde pública, o governo estadual mobilizou carrinhas frigoríficas onde os cadáveres pudessem permanecer várias horas.
A crise do sistema funerário em Manaus sugere que o número real de vítimas da covid-19 poderá ser superior ao que tem sido oficialmente confirmado. Tal como o resto do país, o Amazonas sofre com uma elevada subnotificação, uma vez que praticamente apenas quem dá entrada em hospitais é que é testado ao vírus. Dados da Câmara Municipal de Manaus apontam para que grande parte das mortes pela covid-19 esteja a ocorrer em casa.
Ajuda do Governo federal
Não é à toa que a primeira visita oficial do novo ministro da Saúde, Nélson Teich, tenha sido precisamente a Manaus, onde se encontrou no domingo com o governador, Wilson Lima. A visita serviu sobretudo para anunciar o reforço de profissionais clínicos para apoiar o sistema de saúde local, que é um dos principais problemas no Amazonas. Inicialmente, porém, esperava-se a contratação de 581 pessoas, mas o número foi reduzido para 267, segundo a Folha de São Paulo.
Teich – que assumiu a pasta em plena progressão da pandemia depois de Bolsonaro ter afastado Luiz Henrique Mandetta por não concordar com a sua defesa das medidas de isolamento social – admitiu que a covid-19 “é uma doença que chega com uma capacidade enorme de sobrecarregar qualquer sistema” de saúde.
No caso do Amazonas, no entanto, as condições para uma crise desta magnitude pareciam estar reunidas bem antes da eclosão da pandemia. O estado tem pouco mais de um médico por cada mil habitantes – um dos índices mais baixos em todo o país – e tem também uma rede de cobertura hospitalar muito fraca. O sistema público de saúde parecia estar perto do colapso de forma crónica, com a existência de apenas uma cama nos cuidados intensivos por cada dez mil habitantes, o valor mínimo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).
A dimensão do Amazonas – ligeiramente maior do que a Mongólia – é outro factor que ajuda a explicar a crise no estado. Só os hospitais de Manaus é que dispõem de unidades de cuidados intensivos, o que deixa habitantes de outras localidades a horas de distância da capital praticamente sem acesso a esse tipo de tratamento. Estima-se que 39% do total de infecções seja em pacientes de fora de Manaus.
No estado, os níveis de respeito pelas regras de isolamento social também são dos mais baixos de todo o Brasil. Menos de metade dos habitantes tem cumprido as ordens para permanecer em casa, de acordo com os dados de uma plataforma que estuda a actividade dos telemóveis, citados pelo El País Brasil.
O prefeito de Manaus, Arthur Virgílio, admitiu que as autoridades fracassaram no combate à propagação da covid-19 na cidade. “Fracassámos aqui, o governador e eu. No Amazonas não acataram as nossas recomendações, os decretos não foram obedecidos, o povo está nas ruas”, lamentou Virgílio, durante uma entrevista ao jornal Valor.
A progressão da crise de saúde pública no Amazonas decorre com o pano de fundo de uma crise política. No final da semana passada, a Assembleia Legislativa do estado aceitou os pedidos de impeachment do governador e do vice-governador apresentados pelo Sindicato dos Médicos, que os acusam de falhas na gestão do combate ao novo coronavírus.