Artistas de rua: a difícil sobrevivência de quem perdeu a sua sala de espectáculos

Com a obrigação de recolhimento e as ruas desertas de turistas e moradores, os artistas de rua entraram numa profunda crise. Sem trabalho e sem apoio, reinventam-se e sobrevivem a custo. E o futuro, ainda lhes dará palco?

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Luciana Bastos activou o “modo de sobrevivência”. Com as cidades desertas, a artista plástica (e de rua) perdeu a sua principal fonte de rendimento – e de inspiração. Sem alternativas para enfrentar os dias oprimidos por uma pandemia, recorreu ao seu “reservatório de emergência”, construído, com esforço, nos últimos meses. Reduziu a alimentação ao mínimo, virou-se para os produtos mais baratos, privilegiou o comércio local. E reinventou fórmulas: não podendo desenhar na rua e girar pelo Porto de bicicleta, publicou as suas ilustrações numa loja online. Em dois meses, no entanto, vendeu apenas dois trabalhos. “Não é o suficiente para me manter.”

A pandemia impôs um sinal vermelho aos artistas de rua. As cidades esvaziaram-se, as pessoas recolheram-se, eles perderam palco e sala de espectáculos. Muitos estão há quase dois meses sem qualquer rendimento. E, num meio por regularizar, sem qualquer apoio também. O país põe em prática o seu plano de desconfinamento a partir desta segunda-feira, depois de o estado de emergência o ter desertificado para combater a covid-19. Na estratégia de retorno à normalidade possível divulgada pelo primeiro-ministro, António Costa, não se vai, para já, ao pormenor. Nada parece, ainda assim, contrariar o regresso às ruas dos artistas – desde que não promovam ajuntamentos com mais de dez pessoas.

Luciana Bastos, Giro Art on Wheels
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Luciana Bastos, Giro Art on Wheels

Essa limitação e a consciência do turismo reduzido a quase nada, deverá mantê-los por casa – sem trabalho. E a crença de regressar a um cenário semelhante ao pré-covid-19 parece curta. “Não acredito que a vida volte a ser igual.” Pedro Nuno profere-se a frase sem hesitações. Para ele, artista de rua há sete anos, a covid-19 veio cavar uma crise já instalada. Nas ruas do Porto, apaixonou-se pelas bolas de sabão quando conheceu dois artistas internacionais de passagem na cidade. Com a sua arte, oferece sorrisos às crianças e acredita fazer os adultos regressarem à infância, nem que seja por uns instantes. “É incrível o impacto. Consigo passar os meus dedos pelas emoções das pessoas quando a bola de sabão se forma.”

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Pedro Nuno
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É um trabalho sempre dependente do boletim meteorológico. E a chuva e o vento já haviam deixado João Pedro intermitente desde Dezembro. Com a chegada do SAR-Cov-2, a paragem foi total. “Era a minha fonte de rendimento, não tenho mais nada.”

José Leite só não está no mesmo barco porque a rua não é o seu único palco. O músico actua também em bares e faz alguns festivais e embora também isso esteja cancelado, os descontos que faz como trabalhador independente enquadraram-no no apoio dado pela Segurança Social e pela Direcção-Geral das Artes. É, ainda assim, insuficiente e a “ausência de um plano para os artistas” por parte do Ministério da Cultura revolta-o.

“Sinto-me um bocadinho abandonado”, afirma, fazendo questão de sublinhar o caso de outros, sem apoios, a viver dias dramáticos: “Neste momento, há pessoas mesmo muito mal. Gente com filhos, casais que vivem disto. Tenho falado com alguns. Andam em busca de algum financiamento e não sabem como vão sobreviver...”

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José Leite, "Xinas", músico
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José Leite, conhecido por Xinas, tem aproveitado o tempo para gravar um disco há muito adiado. Voltará às ruas. Mas, para já, decidiu procurar uma actividade temporária, mesmo fora da música, para se manter. A justificação cabe na sua antevisão do futuro: “Os artistas de rua vivem muito do turismo. E, mesmo que as pessoas comecem a voltar à rua, o turismo vai demorar. Não conseguiremos ter o mesmo trabalho.”

A antecipação feita por Pedro Nuno é semelhante. Desistir é verbo fora do seu vocabulário, mas irá cumprir indicações e não arriscará ser foco para aglomerações. “Se faço ajuntamentos sou logo um criminoso.” Enquanto a legislação não for mais clara, diz, continuará parado.

Luís Martins e Inês Duarte, Freeacro Souls
Renan e Najla vendem a sua arte a partir da janela com o projecto Porto Art Stop
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Luís Martins e Inês Duarte, Freeacro Souls

Por agora, os dias são isentos de facilidades. Muitos dos alimentos que consome vêm de caixotes do lixo, conta assertivo, sem se perder em lamentações. “Há um desperdício enorme. Por isso arrecado tudo o que posso. Para mim, a minha cadela e quatro gatinhos.” Não é obstáculo para “tirar o sono”, diz, pelo menos para quem acredita numa vida com efeito bumerangue. “Ontem um senhor insistiu para me dar comida. Aceitei e dei-lhe uns cigarros em troca. Sempre disse: ‘de uma forma ou de outra, procura que vais encontrar’.”

João Pedro poderia ser protagonista numa outra narrativa, sobre a precariedade da habitação. Mas sobre o tecto prefere nem falar. Define-se, essencialmente, como um “homem livre”. E tem um mundo inteiro dentro. “Falo seis línguas”, conta. Português, inglês, espanhol, francês, italiano e hebraico – esta aprendida em Israel, quando uma história de amor o fez viajar até lá. É padeiro de primeira, trabalhou numa tipografia, serviu às mesas. Mas encontrou nas ruas aquilo que verdadeiramente gosta.

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Por isso, vê-las sem gente é “pior do que estar entre uma multidão e ser invisível”, tenta explicar. Xinas usa o adjectivo “desolador”, Luciana Bastos sublinha a tristeza: “Nem tenho muita vontade de sair porque o que faz as cidades são as pessoas. Sem vida nas ruas, a cidade não existe.”

A artista plástica nascida em Brasília consegue, ainda assim, encontrar um lado solar. Moradora na Ribeira, diz ver agora os seus vizinhos, antes perdidos entre turistas. É a essa comunidade, à qual pertence, que sonha dedicar-se. Se aumentar as vendas na loja online, de onde tira 20% para os Médicos do Mundo ou uma rede popular de apoio mútuo do Porto, e os estabelecimentos onde tem trabalhos começarem a vender, talvez possa mudar o foco. “Gostava de voltar a minha arte para a comunidade.”

Kelly, música
Leo Calvio, malabarista de contacto
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Kelly, música

Ninguém sabe quantos artistas de rua existem em Portugal. Em Lisboa, existem licenças, passadas pelas juntas de freguesia, mas os números reais suplantam os oficiais. “A maior parte não actua com licença”, admite Miguel Coelho, presidente da junta de freguesia de Santa Maria Maior, onde se concentram vários artistas. No Porto, nem sequer são emitidas licenças. Mas, diz a autarquia, “existe uma espécie de código de conduta informal” que permite uma “boa relação” entre os artistas e destes com comerciantes e moradores. Em 2019, esteve em cima da mesa a criação de uma associação cultural na cidade. Mas o projecto esmoreceu. Em Lisboa, falou-se num sindicato. Mas também nada foi para a frente. A regulação talvez desse aos artistas uma outra protecção em tempos de pandemia – mas entre a ideia de liberdade total e de segurança, nunca houve consensos. As artes de rua seguem, pois, dentro de momentos. Resta saber como.

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