Pandemias e nacionalismo: ontem e hoje

A dimensão nacional atravessa o discurso dos políticos, os apelos à população, os anúncios de publicidade. As intersecções entre pandemia e nacionalismo não podiam ser mais claras.

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Xie Huanchi/Xinhua via REUTERS

1.Grazie caro Macron, cara signora Merkel...”, obrigado caro Macron, cara senhora Merkel, assim começa um vídeo divulgado quando a Itália começava a sentir os efeitos dramáticos da pandemia atual. Num tom irónico, agradecia-se-lhes terem abandonado os italianos, referindo-se a notícias que davam conta de que a França e a Alemanha não tinham querido vender a Itália máscaras e outro equipamento para enfrentar o vírus. Em seguida, depois de reiterar a sua condição de italianos, referindo-se retoricamente aos lugares-comuns habituais pejorativos de que seriam alvo como os de palhaços ou mafiosos, reivindicava para eles a autoria de uma gama ampla de feitos em que seriam pioneiros, da banca à arte e à ciência. Nesta representação, os italianos não são os meros cidadãos do Estado nacional fundado na segunda metade do século XIX, mas um povo milenar a quem se deve o Império Romano, a primeira entidade a unificar uma boa parte da Europa. Quase ao mesmo tempo, os noticiários transmitiam as declarações do ministro das Finanças holandês, que exprimia a sua recusa a uma mutualização da dívida, entendendo que se devia investigar as razões pelas quais certos países não dispunham de reservas financeiras para fazer face à conjuntura atual.

Estas declarações trouxeram à memória o sucedido na crise anterior, em que um outro ministro das Finanças holandês havia expressado as suas reticências quanto ao auxílio a prestar aos países do Sul, endividados, em sua opinião, por gastarem de mais em “álcool” e “mulheres”. Este tipo de estereótipos está associado a representações antigas dos povos do Norte e do Sul da Europa, denegridoras dos últimos. Nelas, as diferenças entre eles são umas vezes explicadas pela influência do clima — os do Norte seriam mais frios e racionais, os do Sul mais quentes e passionais — outras pela da religião — os católicos sofreriam os efeitos da Inquisição, que teria coartado o desenvolvimento da instrução e da ciência — ou ainda por fatores raciais, explicação popular no século XIX e durante boa parte do seguinte, enquanto o racismo teve ampla aceitação. Os povos do Norte seriam de raça mais pura, superior, as populações do Sul sofriam os efeitos perniciosos da sua condição racial menos pura, inferior, pois estariam contaminadas por sangue semita ou africano. Os estereótipos deste teor são importantes, pois são parte do nacionalismo popular ou banal, o nacionalismo da maioria.

2. A pandemia de covid-19 não é um acontecimento sem precedentes. Tem havido outras, uma das quais particularmente devastadora, a gripe espanhola de 1918-19, conhecida em Portugal como “gripe pneumónica”, cuja recordação foi agora avivada com este surto pandémico. Dá-se o caso de, no decurso da minha vida de investigador, me ter dedicado ao estudo do nacionalismo e desta pandemia específica.

Estima-se que possa ter sido uma das mais mortíferas, se não mesmo a mais mortífera, que a humanidade conheceu. As estimativas das suas vítimas variam muito. Há quem fale em trinta milhões, quem sugira cinquenta, quem diga que foram entre cinquenta ou cem e mesmo quem refira um número superior. Essa incerteza também existe para o caso português, apontando-se recentemente para um quantitativo bem superior aos 100 mil mortos, numa altura em que o país tinha cerca de seis milhões de habitantes! É fácil imaginar o que terá sido a experiência traumática dos que lhe sobreviveram. Todavia, a pandemia acabou por ser esquecida na esfera pública.

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Tratamento de doentes com gripe espanhola nos EUA, em 1918 Getty Images

A razão principal que conduziu ao seu esquecimento dever-se-á ao fato de ela ocorrer no decurso da Grande Guerra e concorrer com esta na recordação. A guerra legou-nos muitas descrições literárias, narrativas e imagens, o que não ocorreu, em proporção comparável, com a pandemia. Mas a memória da guerra perdurou, sobretudo, porque existiu um conjunto grande de atores que a mantiveram viva na lembrança coletiva, dos antigos combatentes aos Estados em conflito. Cemitérios e monumentos aos combatentes espalharam-se pelos campos de batalha e pelos países de que eram naturais. Em Portugal, há um número muito avultado de monumentos associados à Primeira Guerra Mundial. Celebram quem combateu e morreu pela pátria, uma velha divisa invocada para lembrar ser dever supremo dos combatentes dar a vida pelo coletivo nacional e não por um rei, príncipe ou Governo. Comemorações anuais mantêm essa recordação viva, como ocorreu em 2018, ano do centenário do Armistício que pôs fim ao conflito. Para quem também se interessa pela memória coletiva, como eu, os destinos contrastantes das recordações da pandemia e da guerra constituem um facto da maior riqueza.

3. A Grande Guerra de 1914-18, que possui dimensões económicas cruciais, nomeadamente as relacionadas com ambições coloniais, foi alimentada pelo nacionalismo. O fim do conflito acarretou a dissolução dos impérios na Europa — alemão, austro-húngaro, otomano — substituídos por Estados nacionais. O próprio Império Russo transformou-se numa união de repúblicas socialistas em que se reafirmava a identidade nacional de cada uma delas. A consolidação dos Estados nacionais no pós-guerra foi acompanhada pela criação da Liga das Nações, destinada a evitar novos confrontos armados por meio do recurso à negociação. Contudo, a Liga revelou-se impotente para solucionar os conflitos entre os Estados que a constituíam, não conseguindo nem limitar as ambições dos vencedores, nem apaziguar a amargura dos vencidos. As novas fronteiras saídas da guerra eram fonte de discórdia e continuaram a não abranger populações homogéneas de um ponto de vista nacional. Os alemães, por exemplo, haviam perdido a Alsácia e a Lorena para os franceses e constituíam uma minoria descontente na então Checoslováquia e noutros países. O ressentimento alemão, fruto também de enormes dificuldades económicas no pós-guerra, acabaria por levar ao poder os nazis, que conduziram a Alemanha à guerra em nome de um nacionalismo rácico exacerbado.

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Enfermeiras portuguesas da Cruz Vermelha tratam militares feridos em Ambleteuse, França, durante a Grande Guerra, em 1918 Coleção João José P. Edward Clode

Os crimes genocidas do nazismo e dos seus aliados trouxeram o descrédito ao tipo de nacionalismo que representavam, mas não a outros, até porque a oposição ao nazismo e seus aliados recorreu à mobilização nacionalista, associada à defesa das pátrias invadidas e mesmo, no caso dos aliados ocidentais, à das suas tradições políticas liberais e democráticas. Depois da Segunda Guerra Mundial, o nacionalismo inspirou o movimento de descolonização, apresentado como de libertação nacional contra a dominação colonial e o racismo.

Entretanto, o impacto destrutivo do nacionalismo no contexto europeu deu um novo alento às tentativas de criação de uma comunidade europeia no pós-guerra, uma união económica e política entre Estados, que permitisse superar os conflitos do passado: a União Europeia.

4. Ninguém sabe como irá acabar a pandemia que enfrentamos, nem quando, pelo que seria prematuro esboçar qualquer comparação entre ambas. Todavia, apesar de existir hoje uma coordenação internacional incontestavelmente mais significativa do que então, através da Organização Mundial de Saúde, o combate antiepidémico continua ainda fundamentalmente a ter lugar no quadro nacional. Está a cargo de cada Estado em particular, o que reforçou a noção de soberania nacional. As fronteiras nacionais ganharam de novo significado na Europa ou viram o seu papel aumentado em outros locais. As próprias respostas das autoridades à pandemia variam entre os países, apesar da aceitação quase geral da necessidade de algum tipo de isolamento social. A dimensão nacional atravessa o discurso dos políticos, os apelos à população, os anúncios de publicidade. As intersecções entre pandemia e nacionalismo não podiam ser mais claras.

A persistência do quadro nacional não é de admirar. Ao nível das perceções dos cidadãos, o vínculo nacional continua a revelar-se sólido. Quem tenha acompanhado regularmente os estudos de opinião sobre a identificação nacional e a identificação com a UE, verifica que a maioria dos inquiridos expressa uma ligação ao seu país bastante mais forte do que à Europa. A identidade nacional é um produto de uma história mais ou menos antiga. É parte integrante da própria identidade individual, fruto de uma socialização intensa que opera não só através da atuação das agências do Estado, como a escola, como por meio da simples partilha da vida quotidiana no Estado-nação, de geração em geração. A ligação à comunidade política europeia é fruto de processos bem mais recentes.

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Mural na Alemanha com uma representação do Presidente chinês, Xi Jinping, e o Presidente norte-americano, Donald Trump Xie Huanchi/Xinhua via REUTERS

Uma das expressões mais visíveis do nacionalismo no decurso da atual pandemia reside no confronto geopolítico entre os EUA e a China. Este teve o seu início quando o atual Presidente americano tomou medidas inspiradas pelo nacionalismo económico destinadas a penalizar as exportações chinesas para o mercado americano. Entretanto, ao longo do desenrolar da pandemia, o poder norte-americano tem vindo a insistir na retórica nacionalista ao assinalar o suposto caráter “chinês” do vírus, a ocultação da gravidade da pandemia pelas autoridades chinesas, ou uma suposta subserviência da OMS à China. Por sua vez, o nacionalismo chinês, consolidado por décadas de crescimento, não constitui uma força menos poderosa.

O Estado chinês tem ripostado, contrapondo à atitude isolacionista dos EUA o apoio a diversos países europeus. O auxílio — ou a venda — de material usado na luta contra o vírus é rico em simbolismo nacionalista. Lembra-nos que o que está em causa, em termos geopolíticos, é a disputa por um lugar cimeiro entre as superpotências, ao mesmo tempo que manifesta a superioridade do doador e a inferioridade de quem recebe a dádiva, ou mesmo do comprador: países da União Europeia. Mas não se trata apenas de conflitos de natureza simbólica, pois o que a atual política americana põe em causa é o tipo de globalização ocorrido nas últimas décadas, por entender que ele favoreceu a ascensão chinesa e prejudicou os interesses nacionais norte-americanos, bem como o multilateralismo, encarnado em instituições como a ONU e as suas agências.

As manifestações do nacionalismo não se resumem aos afrontamentos entre as duas maiores superpotências, pois fazem-se sentir no seio da UE. As dificuldades por que está a passar atualmente, para definir uma estratégia solidária entre os diversos Estados em torno da definição dos meios para enfrentar a crise económica, refletem em parte, pelo menos — pois não anulam o peso das fraturas político-ideológicas — importantes clivagens nacionais. Não se trata apenas da ação dos Governos, pois as populações europeias foram habituadas pela sua experiência histórica, e pela propaganda dos seus Estados, a pensar-se principalmente como coletividades delimitadas e não como parte de uma comunidade mais ampla.

Os problemas provocados em cada Estado-membro pela atual crise económica são de amplitude muito diferente, e poderão vir a ter, como se afigura provável no momento em que escrevo, resultados nacionais distintos, o que implica dificuldades e sofrimento incomparavelmente maiores para a população dos menos poderosos. Isto constitui um grande risco para a União Europeia, enquanto projeto de aliança coletiva supranacional, pois a sua capacidade para ultrapassar os interesses nacionais divergentes no seu seio — algo que não ocorreu aquando da crise de 2007-2008 — está em questão neste momento.

Mas as articulações entre nacionalismo e pandemia poderão ainda ter outras expressões. Entre elas, a possível mobilização do descontentamento social, gerado pelas desigualdades agravadas pela crise presente, por movimentos de nacionalismo radical e xenófobo, como os que têm vindo a ressurgir nas últimas décadas.


José Manuel Sobral, investigador, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, é co-autor de A Pandemia Esquecida: Olhares Comparados sobre a Pneumónica 1918-19 (Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2009) [PDF em acesso aberto https://www.ics.ulisboa.pt/en/livros/pandemia-esquecida], e autor de Portugal, Portugueses: Uma Identidade Nacional (Lisboa, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2012).


  

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