Antes de a verdade calçar as botas

Esta é a terceira conversa da nossa quinta memória, dedicada ao ódio.

Houve anti-semitismo antes e depois do Caso Dreyfus mas o anti-semitismo moderno nasce com o Caso Dreyfus. O solo fértil da França revancharde, regado por doses copiosas de ressentimento e vitimização das elites católicas e monárquicas faz germinar este fenómeno. Ele não é, contudo, exclusivo deles. Há que dizer que, mesmo na esquerda republicana, muitos admitem desde logo e sem questionar que Dreyfus será certamente culpado. Políticos como o republicano Clémenceau ou o socialista Jaurès, que mais tarde serão vigorosos dreyfusards, dão nestes primeiros tempos por adquirida a culpabilidade de Dreyfus e lamentam até que a pena de morte tenha sido abolida pois consideram-na inteiramente adequada a este caso.

Tendo em conta o ambiente geral, era notoriamente difícil para o Estado-Maior das Forças armadas francesas sair do caso sem uma condenação. Ao ponto em que as coisas tinham chegado, não haver uma condenação seria uma humilhação para o exército, não menor, apenas duas décadas depois, da humilhação de ter perdido a Alsácia Lorena em 1871. Essa nova humilhação seria insuportável e, portanto, a condenação teria de aparecer. A 3 de Dezembro, Dreyfus é levado a conselho de guerra tendo o seu perfil sido traçado por um relatório cujo autor, o comandante d’Ormescheville, remata com as seguintes palavras.

“O capitão Dreyfus é detentor, conjuntamente com conhecimentos muitos extensos, de uma memória notável; fala várias línguas, nomeadamente o alemão, que conhece profundamente, e o italiano, de que pretende não ter mais do que algumas vagas noções; além disso, possui um temperamento volúvel até obsequioso, o que é muito conveniente nas relações de espionagem com os agentes estrangeiros. Era por isso perfeitamente indicado para a miserável e vergonhosa missão que ou incentivou, ou aceitou e da qual, talvez com grande felicidade para a França, a descoberta das suas acções acabou por pôr cobro.”

Começa aqui, para além do Caso Dreyfus, o Enigma de Alfred, pois o comandante Dreyfus, como homem e como pessoa, nunca pode estar bem. Por ser inteligente, é considerado arrogante. Se for modesto, é considerado falso. Por falar alemão perfeitamente, o que era inevitável num alsaciano, é visto não como uma vantagem para o exército francês, mas como uma ameaça. Por ser educado, era considerado escuso. Por se dizer inocente, era considerado culpado. Por teimar na sua inocência era considerado um empecilho para a nação.

Mas a verdade é que as provas continuavam curtas.

Esta é a terceira conversa da nossa quinta memória, dedicada ao ódio.

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