Um dia, we will meet again
Ricardo Arruda-Bunker, gestor português que reside e trabalha em Bristol, no Reino Unido, conta como o novo coronavírus conseguiu algo que nem a Luftwaffe alguma vez tinha imaginado
23 de Março de 2020. De manhã, dei os parabéns à minha mãe, perguntei-lhe o que ia fazer no dia de anos, com Portugal fechado a sete chaves. Ela ia continuar a ler Dostoievski e Amis. A realidade dela parecia-me diferente: no Reino Unido, onde vivo, ainda se circulava livremente por todo o lado. Na minha rua, o barbeiro Sam continuava a dizer-me “good morning”, com aquele sotaque bristoliano arrastado. A argelina da lavandaria continuava com aquele ar de 14 horas diárias de trabalho. O fisioterapeuta israelita continuava a vigiar a rua como se fosse da Mossad. As estudantes mini-Billie Eilish continuavam a caminhar para a universidade.
Só que foi o último dia da ida para o trabalho, para a rua, para a vida pública. Às 20h, Boris Johnson apareceu em declaração curta e grave ao país, ele que não fazia grave. O Reino Unido, a mãe das democracias liberais, iria, pela primeira vez na História, fechar as portas. O coronavírus conseguiu algo que nem a Luftwaffe alguma vez tinha imaginado: um país inteiro em casa.
A partir daí, as rotinas alteraram-se. Reuniões de trabalho substituídas por videoconferências. Ficamos todos a saber um pouco mais dos outros ao entrar assim pelas casas dentro. Quem lê, o que lê. Quem decora as paredes, como decora. Quem tem crianças pequenas que desrespeitam chamadas sérias de adultos. Um vislumbre de hiperintimidade numa nova era de separação. Há colegas que imediatamente ficam sem nada para fazer. Seguem para furlough, nova palavra de 2020, igual ao lay-off português. O Estado, de repente, paga tudo: salários, transportes, empresas.
Há outros como eu que ficam mais ocupados do que nunca. Trabalhar em casa ajuda na produtividade, desmotiva na falta de olhar e trocar. Trabalham-se ainda mais horas, sem se notar, talvez para se escapar à realidade. Ensaiam-se novas formas de contactar clientes, mudam-se estratégias. Adapta-se. Lá dizia o Darwin, survival of the fittest. Há colegas que se queixam de depressão nas crianças. Há outros que se lançam em regimes de desporto olímpico dentro de portas. Lê-se mais, vêem-se mais filmes, escapa-se para breves voltas nos parques, numa valsa calculada de dois metros de distância.
A realidade torna-se uma hiper-realidade. Todos os dias há conferências de imprensa. Contam-se os mortos como uma estatística abstracta. Pouco se sabe deles. Que pais, mães, avós, eram eles? Que vida tinham? Que projectos tinham? Os noticiários são um boletim clínico, em que se está sempre ao lado de um ventilador. Foi você que pediu dor gratuita? O próprio Boris entra nos cuidados intensivos, ressuscita qual Cristo, agradece à neozelandesa Jenny e ao português Luís pelo cuidado médico. O país venera o National Health Service. As noites de quinta-feira são dedicadas a bater palmas aos médicos e enfermeiros, os novos ícones.
A rainha Isabel II, com as suas nove décadas de experiência, disse ao país que um dia nos encontraremos todos de novo. Um dia tudo voltará ao normal. Um dia.