Novas oportunidades para o sistema de ensino:
que fazer?

Alguns dirão que este programa de acção é muito ambicioso e que se parece mais com um programa para 30 anos do que para uma intervenção de médio prazo. A esses dizemos: olhem a realidade e leiam uma segunda vez. O tempo da indolência para resolver problemas básicos de democracia e direitos terminou. Que venham debater os que souberem e quiserem responder à pergunta: que fazer?

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Nas últimas semanas fomos interpelados com a seguinte pergunta: que fazer para resolver os problemas de desigualdade que já vinham de trás, mas que durante a crise se transformaram em brechas do sistema educativo português?

Havia uma crítica implícita na urgência desta interpelação. A crítica de que os investigadores são bons a diagnosticar, mas não tão bons a apontar caminhos e soluções. Embora tenhamos aceitado o desafio sobre o que fazer, gostaríamos de deixar três advertências iniciais:

Primeira: a boa ciência social continua a analisar o que existe, como existe e quais os mecanismos profundos que provocam certo tipo de resultados e não a profetizar e a idealizar futuros. O que não quer dizer que a ciência não possa ser também um actor social. A análise da realidade, porque parte sempre de perguntas e da valoração do que é prioritário analisar em cada momento, ao entrar no espaço público é também uma forma de acção.

Segunda: o que separa na maior parte das vezes os cientistas sociais e a esfera política começa nos diagnósticos da situação. As propostas contrastantes de futuro são o resultado de divergências profundas na fase de diagnóstico, diferenças nas perguntas e nos problemas a resolver.

Terceira: a crise da escola que se tornou visível nos últimos dois meses não é apenas o reflexo do que se passa dentro dela, mas revela sobretudo as relações da instituição com a sociedade e com o que se passa na economia, na cultura, nas condições materiais e mentais de vida. Erram aqueles que acham possível fazer propostas para a educação sem cuidar de olhar para os efeitos sistémicos do abalo telúrico que estamos a viver neste momento. Por conseguinte, as respostas imediatas nunca podem ser imediatistas; a urgência da resolução de problemas num domínio institucional nunca pode ser pensada fora do conjunto social.

Destas advertências retiramos três orientações:

  • É imprescindível continuar a fazer bons diagnósticos. Sem isso navegaremos à vista, num mar de idealizações típicas das ideologias.
  • É preciso alargar o ângulo de análise e não nos centrarmos apenas nas respostas micro, visto que é o macro que nos está a arrastar e a abrir brechas mais fundas na sociedade e na escola.
  • A vontade de intervir no plano político e social não deve contaminar os diagnósticos e análises. Cada investigador é sempre um cidadão pleno e consciente das suas responsabilidades de participação social. E, nesse contexto, cabe-nos também o exercício da cidadania. Mas não confundimos os planos. Nada de pior existe nestes momentos do que a figura dos cientistas-políticos ou a dos políticos-cientistas que tentam profetizar futuros imaginados a partir da ciência, ou manipular a ciência a partir de agendas políticas.

Definidos estes parâmetros, vamos ao que fazer. Usaremos para esse efeito quatro contradições que se evidenciaram durante a presente crise.

Sabemos que a organização e a pedagogia são duas faces intrinsecamente ligadas da vida escolar. As contradições referidas implicarão sempre respostas que articulem essas duas dimensões que, separadas nas políticas, têm criado verdadeiras situações paradoxais nos últimos anos: escolas burocratizadas e pobres de recursos, professores com muitos alunos em turmas grandes, a quem são propostas inovações pedagógicas que, naturalmente, acabam por não vingar.

A primeira contradição diz respeito às desigualdades estruturais que sempre estiveram presentes no sistema de ensino, embora se declare empenhado no projecto da escola universal. As desigualdades estruturais são conhecidas de todos: elevados índices de insucesso e abandono, incumprimento da escolaridade obrigatória em quase todos os ciclos de estudo, incapacidade de integrar com sucesso as minorias étnicas, lentidão no processo de generalização do ensino pré-escolar iniciado há 25 anos, deficiências no modo como se lida com o ensino integrado, e a lista poderia continuar.

O que fazer diante de uma situação que, embora tenha melhorado nos últimos 25 anos, se mantém?

  1. Estabelecer metas políticas ambiciosas, com a afectação de recursos correspondente, que nos aproxime do cumprimento integral da escolaridade obrigatória de 12 anos num período de quatro anos.
  2. Reduzir no mesmo período o insucesso e o abandono assegurando as aprendizagens para todos.
  3. Generalizar o ensino pré-escolar, integrando-o no ensino obrigatório, universal e gratuito.
  4. Estabelecer programas específicos de integração das minorias étnicas e dos alunos com necessidades especiais.
  5. Consensualizar uma política geral de ensino, aprendizagem e avaliação diferenciado que considere de forma equitativa o ponto de partida de cada aluno concreto e não uma norma universal que, representando um aluno médio abstracto e idealizado, deixa para trás os que mais dificuldades têm em se apropriar dos códigos elaborados da cultura escolar.

A segunda contradição resulta do modo como a escola se relaciona com as novas tecnologias nos processos de aprendizagem. O diagnóstico foi feito de forma aproximada durante a crise. A ficção da geração nativa digital bateu na parede dos cerca de 1/3 de infoexcluídos na escola básica e secundária. Infoexcluídos por falta de recursos mas também por iliteracia digital.

Porém, esta contradição tem um outro lado não menos lesivo da igualdade de uso do sistema de ensino: a utilização maioritária das novas tecnologias como simples meio auxiliar do ensino tradicional e não como uma verdadeira ferramenta que dê impulso a aprendizagens diferenciadas e significativas ancoradas nas experiências dos alunos. Sendo estas tecnologias um suporte essencial da sociedade do conhecimento, construída em redes de todo o tipo, torna-se empobrecedor reduzir a sua utilização como suporte da aula expositiva e unidirecional do ensino colectivo, igual para todos. Nestas condições continuam a sair beneficiados os que mais capital cultural familiar têm, limitando os outros das vantagens de acesso rápido e horizontal a todo o tipo de informação disponível nas redes e na sociedade de conhecimento, à sua pesquisa e articulação. Na verdade, as tecnologias não são intrinsecamente democráticas e igualitárias, dependendo do uso que delas se faz.

O que fazer na área tecnológica?

  1. Estabelecer metas exequíveis de acesso generalizado, quer nas escolas quer em casa, aos meios informáticos e às redes. A Nova Zelândia deu neste domínio um bom exemplo do que o Estado pode fazer em pouco tempo. E a sociedade-providência também se tem mobilizado para esse efeito, como o demonstra o projecto studentkeep.
  2. Expandir os centros de documentação e informação em rede que permitam uma substancial transferência do ensino reprodutivo, baseado na exposição e memorização, para a aprendizagem produtiva, centrada nas experiências dos alunos e nos seus percursos autónomos de apropriação da informação e do conhecimento.
  3. Garantir que uma parcela do ensino colectivo possa ser substituída, em percentagens variáveis, pelo ensino tutorial ou em pequenos grupos, presenciais e remotos, na base de projectos.
  4. Estabelecer novos contratos de autonomia com as escolas que queiram aderir voluntariamente a novas formas de combater as desigualdades escolares.
  5. Articular as políticas e as práticas de associações que trabalham na alfabetização de adultos e na educação permanente, associando os pais a estes processos tecnológicos. As relações dos adultos com a escolaridade dos filhos, as decisões que tomam, o apoio que asseguram fazem parte das desigualdades existentes e da sua resolução.

A terceira contradição é a consequência do modelo de ensino obsoleto anterior à primeira revolução industrial. Temos dito que é preciso revisitar de forma crítica o modelo oitocentista baseado no princípio de ensinar a muitos como se estivesse a ensinar a um só. Revisitar esse modelo implica também fazer a crítica do modo como nele se estruturam as variáveis espaço e tempo, baseadas em dois padrões imutáveis: a sala de aula para um grupo de alunos fixo e tido por homogéneo; o tempo fixo e uniforme da aula. A história do ensino entregou-nos como testemunho este modelo institucional que vingou no tempo. Mas como bem sabem os historiadores da educação, ele sobreviveu não por ser o melhor mas porque passou a ser o único horizonte possível para pensar a escola. Iniciativas que se concretizaram nas escolas e que contrariavam este modelo foram anuladas por políticas adversas a qualquer modelo que saísse dos cânones tradicionais. Hoje temos mais recursos para pensar de forma crítica este modelo, conhecemos também melhor as alternativas que, embora não se tenham afirmado como opções maioritárias, apontaram caminhos possíveis.

Um entre muitos outros caminhos possíveis é a chamada pedagogia de projecto, centrada na experiência dos alunos e na descompartimentação dos saberes. Escolhemos este exemplo não porque seja o único ou a melhor alternativa, mas porque ilustra bem os contrastes com o modelo tradicional e porque se praticou e se pratica, com sucesso, em escolas orientadas por correntes das “novas pedagogias”, tanto entre nós como, por exemplo, em Espanha num movimento iniciado pelos colégios jesuítas ou, ainda, nas escolas finlandesas.

A pedagogia de projecto tem condições para romper com pelo menos três características do modelo tradicional da escola de massas: ensino colectivo; espaço escolar centrado na sala de aula e tempo homogéneo da aula.

O agrupamento dos alunos deixa de ser um exclusivo da classe/grau e passa a ser possível articulá-lo com diferentes formatos de grupos de trabalho de vários anos e turmas em função dos objectivos.

O ensino colectivo passa a articular-se com as tutorias individuais e de grupo e com o trabalho autónomo dos alunos.

A sala de aula deixa de ser o centro de gravidade da aprendizagem, alargando-se as possibilidades aos centros de documentação e informação, às mediatecas, às redes virtuais e aos recursos comunitários.

O tempo homogéneo da aula, que pode continuar a existir, articula-se com maior frequência com o tempo de tutoria individual, de orientação de grupo, de trabalho de pesquisa ou de estudo autónomo, em função dos objectivos de cada projecto, contratualizados entre professores e alunos.

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O que fazer neste âmbito?

  1. Incentivar e organizar nas escolas um debate alargado sobre as alternativas ao modelo institucional de ensino colectivo, expositivo e unidireccional que já provou não responder às exigências de igualdade e equidade das sociedades contemporâneas. Esses modelos devem ter preocupações de diferenciação do ensino, de acompanhamento tutorial de todos e especialmente dos que mais precisam, de garantir a cada um experiências significativas que permitam cumprir as metas curriculares e superar as desigualdades com origem na pertença social, étnica e de género.
  2. Os modelos alternativos devem ser consensualizados e podem conviver com o modelo tradicional se a escola assim o desejar. As aulas expositivas podem ser substituídas com vantagem pelo trabalho de grupo orientado pelo professor em novos espaços escolares definidos para o efeito, mas também de forma remota em casa dos alunos, em bibliotecas ou outros recursos educativos e culturais disponíveis no território. O tempo-padrão da aula pode ser substituído por créditos horários dos professores e alunos para cumprirem um certo número de objectivos e tarefas que se integram nas finalidades estabelecidas pelas metas curriculares.
  3. As escolas que optarem por modalidades alternativas podem promover projectos de natureza interdisciplinar que envolvam mais do que uma disciplina. Nestes casos, os professores de várias disciplinas articulam-se de modo a responderem às necessidades de cada grupo de trabalho. O acompanhamento deve usar abundantemente as potencialidades das redes, quer na busca de nova informação quer nas relações remotas entre professores e alunos de uma mesma escola, ou de escolas diferentes, com projectos afins.
  4. O modelo organizacional da escola e a alocação de espaços e de tempo a professores e alunos exigirão fortes adaptações aos novos modos pedagógicos assentes em formas de organização mais flexíveis e descentralizadas. Implicarão também recursos e condições materiais de trabalho adequadas a estes objetivos.

A quarta contradição resulta dos processos avaliativos. Ela pode começar a ser resolvida pela superação da meritocracia que preside ao processo avaliativo centrado nos testes e nos exames. A ficção de um aluno médio que representa a totalidade só subsiste através do exame que cria uma tecnologia complementar: supõe-se que os alunos que transitam são os que estão em condições de receber um ensino colectivo no grau seguinte. Mas o exame também foi instituído como forma de certificar o valor de cada um e de inserir esse valor na lógica performativa do mercado de trabalho capitalista. A meritocracia tem sobrevivido com essa mentira conveniente que fez do exame o fetiche dos que sempre esconderam as desigualdades por trás do biombo supostamente neutral e objetivo dos seus resultados. De forma inesperada, a pandemia desfez no ar a solidez das evidências, demonstrando que o valor medido pelos exames está também dependente dos recursos económicos e do capital social e cultural das famílias e, portanto, dos alunos.

É preciso aproveitar esta oportunidade para reflectir no valor comparado dos exames e da avaliação formativa. Começar a levar a sério o papel fundamental da avaliação formativa e não permitir que ela continue capturada pela avaliação sumativa; usar a avaliação criterial, sensível a pontos de partida e de evolução desigual dos alunos e não deixar que ela seja pervertida pela avaliação normativa e pela força redutora de “estudar para o exame”; ligar mais a avaliação aos percursos de aprendizagem do que às intenções do ensino.

O que fazer para mudar a avaliação?

  1. Abrir um debate nacional sobre o papel e peso da avaliação formativa e dos exames nos ensinos básico e secundário.
  2. Reduzir até à extinção todos os exames existentes no ensino universal, obrigatório e gratuito de doze anos, deixando ao ensino superior a responsabilidade de construir alternativas nacionais ou locais de acesso.
  3. Pôr a avaliação ao serviço da aprendizagem e não da certificação e da produção de diplomas para o mercado de trabalho.
  4. Dar primazia às formas e usos da avaliação formativa e criterial, ligadas às experiências e percursos individuais de aprendizagem divergente, em detrimento da avaliação normativa associada a processos de acumulação e reprodução da informação.

Estas propostas são certeiras para muitos, inaceitáveis para alguns e inconsequentes para outros. Isso só quer dizer que o tema interessa a todos e que a esfera pública o deve debater em busca de linhas de divergência e de consensos possíveis. É isso que é próprio de uma sociedade aberta.

Dirão outros que este programa de acção é muito ambicioso e que se parece mais com um programa para 30 anos do que para uma intervenção de médio prazo. A uns e a outros dizemos: olhem a realidade e leiam uma segunda vez. Verificarão que se trata apenas de um programa mínimo que visa cumprir o projecto da modernidade e do estado social anunciado na LBSE (1986), no momento do alargamento da escolaridade obrigatória para 9 anos. A contagem dos 30 anos começou aí e o tempo esgotou-se nos 34 anos que vimos passar placidamente, sem que as ambições se tenham cumprido. O tempo da indolência e da falta de vontade política para resolver problemas básicos de democracia e direitos terminou. Estivemos parados muito tempo, agora temos de correr, não ignorando as exigências das mudanças pessoais, de grupo e institucionais aqui propostas. Que venham debater os que souberem e quiserem responder à pergunta: que fazer?

Rui Machado Gomes UC. Centro de Estudos Sociais. OP-Edu
Ana Benavente ULHT. CeiED. OP-Edu
Paulo Peixoto UC. Centro de Estudos Sociais. OP-Edu

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