Por que razão odiamos os sem-abrigo?
Testemunho de Filipe Gaspar, actor e activista na Saber Compreender. “Um homem pede desesperadamente uma garrafa de água, aliás, toda gente pede água. Entendi naquele momento que, estando os cafés fechados, locais onde habitualmente se podia encher uma garrafinha ou pedir um copo de água, matar a sede é uma necessidade.”
Quando era pequeno, cruzava-me muitas vezes com um mendigo, era assim que na altura se apelidavam as pessoas que faziam da rua residência. Era conhecido por “Cinco Escudos” e nem preciso de explicar a razão pela qual tinha esse nome por ser tão óbvia a resposta. Era uma espécie de figura pública na minha zona, porque toda a gente apreciava a sua amabilidade com as crianças.
“Olha, morreu o ‘Cinco Escudos’”, disseram-me. Tive o mesmo sentimento que o Kevin McCallister, do filme Sozinho em Casa, teve quando se despediu da senhora dos pombos que vivia nas ruas de Nova Iorque. No filme eles despedem-se e ela não morre. Eu não me despedi.
Passaram quase 30 anos e estou dentro duma carrinha vermelha com a Saber Compreender juntamente com mais três voluntários altamente equipados. O estado é de emergência e as urgências da fome, sede e da sociabilização fragmentam as quarentenas impostas pelo decreto. O frenesim extinto das ruas do Porto e o pavor da proximidade física aumentam a vulnerabilidade das pessoas em situação de sem-abrigo e por isso medidas para salvaguardar os direitos humanos urgem. Levamos na bagageira refeições quentes e no colo alguma ansiedade.
A primeira paragem é na rotunda do Cerco e, como estamos altamente mascarados, quem faz o primeiro reconhecimento no local é o Rui Salvador com a voz meiga inconfundível. O Rui é educador de pares e colabora com a Saber Compreender, associação que é presidida pelo Christian, antigo morador das ruas do Porto. Ter na equipa alguém que já vivenciou a experiência da rua é fundamental para criar empatia com quem há muito deixou de conseguir ter voz activa na comunidade.
Gente aproxima-se da carrinha, nada de novo. A novidade é fome mais aguçada e a sensação de abandono. Um homem diz-nos: “Já quase ninguém passa aqui.” Refere-se a ajuda para comer. Pede desesperadamente uma garrafa de água, aliás, toda gente pede água. Entendi naquele momento que, estando os cafés fechados, locais onde habitualmente se podia encher uma garrafinha ou pedir um copo de água, matar a sede é uma necessidade. Facilmente imaginam este cenário de fome e sede numa aldeia da República Democrática do Congo, mas posso testemunhar que ainda ontem o Porto estava assim.
Do outro lado da rua, duas senhoras com uma criança espreitam para o interior da carrinha. Não se aproximam e nós decidimos perguntar se precisam de alguma coisa. “Sabe, nós não somos como ELES, mas não temos nada no frigorífico.” É impressionante observar a competência que uma crise tem de nos empurrar do limiar da pobreza para o território da privação de rua, e o ELES passa a ser NÓS. Julgo que a maior parte das pessoas não tem consciência que quando um determinado grupo da população é destituído da sua humanidade, que quando pessoas que vivem na rua passam apenas a ser ELES, cria-se uma espécie de ódio e caminhamos num território em que o abandono e a morte são banalizados. Como é que nos podemos gabar de uma democracia com liberdade plena, quando uma fatia da sociedade não tem acesso a comida na mesa, educação de qualidade e o conforto de uma casa?
Não gostamos dos sem-abrigo, porque temos vergonha da verdade que dizem sobre NÓS. Cada vez me convenço mais de que o discurso da força de vontade para reabilitação pessoal é apenas banha da cobra, se não houver uma mão amiga pronta a puxar-nos e a criar laços verdadeiramente humanos. Nesta cidade, às vezes o único lugar onde encontro uma pessoa corajosa e honesta é na rua.