Covid-19: por quem os sinos dobram
Uma questão bioética fundamental deveria ser tema de discussão séria, na sociedade portuguesa de hoje: a quem alocaremos os ventiladores disponíveis em caso de aumento súbito do número de doentes com covid-19?
Com uma constância digna de um funcionário público disciplinado, a covid- 19, segundo os dados da Direção-Geral da Saúde, na semana passada em Portugal, em média por dia, matou cerca de 27 pessoas e contaminou cerca de 522. Os enterros foram, por razões de saúde pública, tristes e assustados: os vivos receiam que os mortos lhes transmitam a peste.
Quando cessar o estado de emergência, a covid-19, indiferente à vontade do senhor Presidente da República, continuará a ser causa de morte no nosso país: o vírus está aí, não é azul nem fluorescente, pronto para nos apanhar em qualquer superfície em que, inadvertidamente, poisemos as mãos. Uma lotaria negra, de morte, abateu-se sobre nós, determinando que alguns morrerão, só não sabemos quem serão os infelizes contemplados no sorteio diário que nos aguarda.
Se as pessoas confundirem a realidade no plano jurídico com a realidade factual, tenderão a descontrair e a pensar que o regresso à normalidade constitucional significou o regresso à normalidade sanitária. Voltarão a abraçar-se, felizes por estarem vivas, pelo reencontro tão ansiado e a pandemia acentuar-se-á. A realidade dos factos em Espanha e na Itália mostra-nos o que acontece quando esta se revela em todo o seu esplendor, com milhares de mortes e a insuficiência de meios de tratamento disponíveis para acorrer às necessidades de todos os que deles necessitam.
Uma questão bioética fundamental deveria ser tema de discussão séria, na sociedade portuguesa de hoje: a quem alocaremos os ventiladores disponíveis em caso de aumento súbito do número de doentes com covid-19? Serão de adotar as linhas orientadoras da Sociedade Espanhola de Medicina Interna que, assentando num pretenso “bem comum” definido de forma utilitarista, nos dizem que não deveremos selecionar, para o efeito, os mais idosos ou doentes, os mais frágeis atenta a sua constituição biológica, com menor esperança de vida à partida? Iremos adotar a regra de que quem tem mas de 70 anos ou é diabético, ou doente oncológico em fase avançada, não tem à sua espera um dos ventiladores, disponíveis em número insuficiente no sistema de saúde, no caso de dele necessitar, por ser portador da covid-19?
A definição destes critérios determinará quais as vidas que a nossa comunidade entende merecerem ser vividas. Significará uma revolução no plano jurídico porque a dignidade deixará de ser uma qualidade a todos reconhecida e invariável ao longo da vida de cada um, para se tornar num conceito quantitativo, sendo alguns considerados mais dignos do que outros. O dever do Estado de respeitar e garantir a vida de todos nós, de assegurar o respeito pelo direito à proteção da saúde na sua vertente de acesso equitativo a cuidados de saúde de qualidade e apropriados ao estado clínico em que nos encontremos, terá que ser repensado. A não discriminação injusta com base na idade e na vulnerabilidade passará a significar que quem, sendo portador da covid-19, é jovem e saudável, é indevidamente discriminado se, tendo chegado meia hora mais tarde a um hospital, encontrar o ventilador ocupado por uma pessoa de 71 anos diabética?
A formulação destas regras orientadoras da atuação dos profissionais de saúde terá consequências naquilo que a nossa sociedade poderá ser, daqui a alguns anos: uma sociedade jovem, saudável e bonita ou uma sociedade mais grisalha, menos saudável e também bonita. Terá efeitos pedagógicos porque a covid-19 preanuncia uma nova era de pandemias, em que vírus e organismos geneticamente modificados, nocivos à sobrevivência da espécie humana, poderão ser produzidos em laboratório e deliberadamente lançados no ambiente. Os critérios que definirmos hoje serão aqueles que nos serão aplicados, em situação de pandemia de contornos semelhantes, daqui a dez ou 20 anos.
Se queremos comemorar o 25 de Abril de 1974 e a Constituição profundamente democrática dele nascida, deveremos defender – através da discussão séria, livre e esclarecida em matéria essenciais como esta – os valores que estão na sua génese, os da liberdade, igualdade e solidariedade para com todos, em particular para com os mais vulneráveis de entre nós.
De contrário, os sinos continuarão a dobrar, enquanto não se dispuser de tratamento médico eficaz, pela morte constante e contínua, dos mais idosos e doentes da nossa sociedade. Continuarão a dobrar por todos nós, pela tristeza do tempo que se quebrou com a pandemia e pela nossa possível incapacidade de controlar, de forma séria e equitativa, o que uma segunda vaga da doença poderá trazer.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico