O sofrimento que não se vê

A atenção e o cuidado são formas de estar que nos vão escapando. São coisas fugidias que nos escorregam pelas mãos. Facilmente as esquecemos no meio das pressas e dos atrasos.

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Ismail Hamzah/Unsplash

Ao longo dos anos, muitas têm sido as mensagens dos ouvintes e leitores que vou recebendo e coleccionando. São partilhas que quero guardar, desabafos que quero ter sempre por perto, agradecimentos que fazem com que nunca duvide que escolhi a profissão certa. 

Na Smooth FM, durante a quarentena, as mensagens têm chegado em maior volume. As pessoas, estando e passando mais tempo em casa, estão também mais disponíveis para o desabafo e para o tempo de o fazer. 

É estupidamente gratificante olhar para um conjunto de frases que demonstram alegria e que nos elevam saudavelmente o ego. Vibramos com as mensagens dos ouvintes, fazem-nos querer ser mais e melhores todos os dias, em cada programa. Mas nem só de sorrisos vivem as palavras e as histórias que nos contam. Da mesma forma que lemos um “hoje ouvia-o enquanto cozinhava para os meus filhos” ou “de casa ao trabalho levo vinte minutos e é com a vossa música que chego motivado”, ou até “a minha filha nasceu ao som do Jazz Fora d'Horas”, também nos vão chegando mensagens que nos petrificam e deixam em silêncio. Algo como “descobri hoje que tenho cancro” ou “perdi esta noite o meu pai”. Mensagens que podem não estar directamente relacionadas com a estação em si porque não terá sido ao som de Nat King Cole que a notícia chegou, mas que em tudo nos aproximam. 

As pessoas, de forma surpreendente, têm ali um lugar e um espaço onde podem repousar as suas fragilidades, as suas tristezas e inquietações. As pessoas descobrem, no caminho da rádio, um caminho para sair do que as sufoca. E isso não podia ser mais nobre e não podia fazer-nos sentir mais privilegiados, neste sentido de responsabilidade e compromisso. 

Há uns dias, uma das mensagens recebidas levou-me a este tema: o sofrimento que não se vê. Quantas vezes não têm passado por nós pessoas amigas, conhecidas ou mesmo distantes, que, por detrás do olhar que se cruzou com o nosso, estão a sofrer na sombra, recolhidas no silêncio? 

Existe gente com um nível de sensibilidade mais apurado, mas nunca ninguém adivinhará o pensamento ou o que se passa do lado de lá da conversa, ainda que presencial. Seja um namoro terminado, um desemprego acabado de se instalar, a perda de alguém importante, a derradeira notícia de uma doença. São realidades silenciosas e disfarçadas no “está tudo bem, sim” ou “quer o contribuinte?”. 

Não sabemos o que está ali atrás. Ali, naquele lugar concreto onde mora alguém. É preciso ser gentil com quem nos olha, estar atento a quem precisa. E porque não a quem também não o necessita? 

A atenção e o cuidado são formas de estar que nos vão escapando. São coisas fugidias que nos escorregam pelas mãos. Facilmente as esquecemos no meio das pressas e dos atrasos. 

Cada pessoa tem a sua luta para lá daquilo que está à mostra, daquilo que é visível. Há quem se mostre mais disponível para a conversa ou quem esteja mais capaz de deitar cá para fora algo que deixe de pesar, mas os casos mais preocupantes são aqueles que vivem em silêncio, envoltos numa camada desmesurada de preocupação que rapidamente se agrava quando do lado de cá possa sobressair a indiferença descabida. 

Não é preciso o constante alarme, nem tampouco a constante distracção. Saber encontrar entre estes dois termos, uma forma de ouvir e reconhecer. Porque a pessoa que acabou de nos abraçar, de nos perguntar ou mesmo convidar, pode ter mais para dizer do que o abraço, uma pergunta ou um convite. 

​Há silêncios que nos protegem e merecem respeito. Outros que nos ocupam e merecem atenção. 

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